terça-feira, 24 de março de 2020

O Convento do Carmo em Lisboa e os começos da Arquitectura Carmelita. Francisco Teixeira. «Em Lisboa, o Convento do Carmo foi edificado numa colina, longe da velha Alcáçova, de origem islâmica, e onde permanecia, numa continuidade dos centros de poder, o Paço Real»

Cortesia de wikipedia e jdact

O Convento do Carmo em Lisboa e os começos da Arquitectura dos Carmelitas
«O Convento do Carmo de Lisboa, situado, paradoxalmente, no que se costuma designar como a Baixa, na linguagem comum dos lisboetas, constitui pela sua localização actual, pelo volume arquitectónico que ainda hoje se destaca no casario, e pelo seu estado de ruína, uma das edificações de origem medieval mais impressionantes e carismáticas da cidade de Lisboa. Para essa valorização contribui, certamente, o facto da igreja conventual se apresentar como um dos raros vestígios de construções medievais na capital, e a sua ligação à figura de Nuno Álvares Pereira.
A primitiva edificação encontra-se, há muito, bastante transformada e em grande parte arruinada pelo terramoto que em 1755 devastou a cidade, com uma destruição prolongada pelos incêndios que se seguiram. O que chegou até aos nossos dias merece, no entanto, uma análise cuidada, permitindo reflectir sobre as origens da arquitectura construída para a Ordem do Carmo, em território português. A importância dos vestígios arquitectónicos medievais da igreja conventual assume também especial relevo na medida em que o primeiro convento dos carmelitas, erigido em Moura (e a exigir um amplo estudo arquitectónico e especiais cuidados na sua reabilitação), sofreu alterações profundas a partir do século XVI, levando à ocultação e ao desaparecimento das primitivas construções conventuais.
Em Lisboa, o Convento do Carmo foi edificado numa colina, longe da velha Alcáçova, de origem islâmica, e onde permanecia, numa continuidade dos centros de poder, o Paço Real. Desta forma, o convento localizava-se no exterior, em relação ao poder, simbolizado pelo castelo e pelas estruturas palatinas, residência do rei João I. A constatação desta diferença de ordem espacial, na organização do espaço urbano medieval, tem conduzido à valorização desta escolha realizada por Nuno Álvares Pereira, segundo as crónicas monásticas. Esta escolha tem sido interpretada como um sinal da independência, senão mesmo de afronta do Condestável em relação ao monarca João I
Os problemas anteriormente anunciados, respeitantes à interpretação da escolha do local, como expressão das tensões e rivalidades entre Nuno Álvares Pereira e João I, associadas ao conhecimento das origens da própria Ordem, não nos devem fazer esquecer a relação com a arquitectura sua contemporânea, nomeadamente a arquitectura das Ordens Mendicantes, em relação à qual deve ser pensada. A interpretação geral da arquitectura do Convento dos carmelitas de Lisboa tem-se baseado nas comparações com a Batalha, o denominado Mosteiro de Santa Maria da Vitória, da Ordem dos Dominicanos. Podemos considerar esta via interpretativa, comparando uma construção patrocinada por João I com uma edificação patrocinada pelo Condestável Nuno Álvares Pereira, paralela à análise quanto à localização do convento: em ambos os casos, a relação entre o rei e o condestável parecem decidir dos destinos da realidade material da casa dos carmelitas. A relação entre ambos encontra igualmente expressão, tendendo a corroborar essas interpretações, nas invocações escolhidas para cada uma das casas conventuais: Nossa Senhora da Vitória e Nossa Senhora do Carmo, e posteriormente do Vencimento do Carmo, ambas com o mesmo significado de vitória em acontecimentos militares.
Estas similitudes entre uma casa fundada por um nobre e uma fundação real, já foram vistas como um sinal da ambição desmedida de Nuno Álvares Pereira, como escreveu António José Saraiva, para quem, inclusive, a edificação da casa dos carmelitas procuraria rivalizar não só com o Mosteiro da Batalha, então em construção, como também com o Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, uma das maiores construções monásticas existentes em Portugal1. A possibilidade de comparação com a grande igreja dos cistercienses seria naturalmente importante, pela antiguidade desta casa monástica, pelas dimensões da sua igreja, com mais de 100 metros mas, igualmente, pelo prestígio que lhe advinha de ser o último panteão régio.
Na realidade, não possuímos nenhum testemunho da época que permita afirmar como intenção primeira do Condestável, ou sequer como um seu propósito, colocar a edificação que patrocinava ao lado das duas maiores igrejas então existentes no Reino. O propósito de construir uma casa religiosa que se impunha pela sua escala não parece deixar dúvidas, como, ainda hoje, a visão do convento pelo lado do Rossio deixa entender. Mas esta conduta não se diferenciaria, verdadeiramente, do comportamento da maioria dos grandes senhores, interessados em patrocinar a construção de uma nova casa religiosa, ou em oferecer um objecto litúrgico precioso, de molde a prestigiarem-se pela magnanimidade, e a propiciarem para si a salvação da alma. Para qualquer destes aspectos a escala construtiva, ou o valor material e simbólico dos objectos, não era secundário. Daí o facto da igreja dos carmelitas de Lisboa ser, a par das igrejas de Santa Clara de Santarém e de Santa Maria da Vitória, uma das das igrejas das Ordens mendicantes que tinha mais de 70 metros. Estas 3 igrejas possuem em comum o patrocínio da construção ficar a dever-se a personalidades laicas, com poder económico e político, qualidades também presentes no rei Afonso III, o grande apoiante da criação do Convento de Santa Clara de Santarém. Compreende-se que a historiografia dê particular ênfase ao Rei ou ao Condestável, pela sua qualidade de patrocinadores de obras medievais, e como tal com particular importância na orientação do que poderemos chamar o programa arquitectónico». In Francisco Teixeira, O Convento do Carmo em Lisboa e os começos da Arquitectura Carmelita, Convento de Nossa Senhora dos Remédios, Actas do Ciclo de Conferências sobre Convento de N Senhora dos Remédios e a Ordem do Carmo em Portugal e no Brasil, Universidade do Algarve, Évora, 2013, ISBN 978-972-850-948-4.

Cortesia de UAlgarve/JDACT