terça-feira, 3 de março de 2020

O Pecado e a Honra. Maria João Câmara. «… alinhados em sua ordem e pagamento. E o barulho das pedras do ábaco coloria também o som do garatujar e as surdinas conversadas, assim como os ruídos da rua que chegavam aos ouvidos de todos, peneirados por portas e janelas várias»

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«(…) Nos meses seguintes, Rodrigo Figueira pouco modificaria a sua rotina, excepto pelo intuito de cumprir o seu papel de procriador, fazendo visitas regulares ao ventre de sua mulher, onde esta o recebia quase com indiferença. Como desejava, como todo o homem honrado, ter descendência, carne da sua carne, sangue do seu sangue, essas visitas eram regulares mas sem grande exuberância. A Maria bastou-lhe anunciar que estava pejada para ter o seu sossego. Rodrigo não a procurou mais. E cerca de nove meses depois do dia do casamento, nasceu Francisco, matando do parto a sua mãe que, esvaída em sangue, apenas teve tempo para olhar para a criatura que gerara e sorrir levemente, terminando a sua passagem por esta vida e partindo para uma melhor. Rodrigo Figueira ficou, apesar de tudo, desconsolado. Havia sentido uma genuína afeição pela sua mulher. Voltou para sua casa, na rua da Costa do Castelo, a norte da muralha do castelo de S. Jorge e deixou de vez a casa dos Jácome. A criança foi entregue aos cuidados de uma ama. Enquanto não crescesse, roçar-se-ia pelas saias da casa. Seu pai, esse, ficaria para sempre um distante desconhecido.

Rodrigo Figueira obteve a graça do Rei no ofício de escrivão da Fazenda por promessa que Sua Alteza havia feito a seu pai, Henrique Figueira. Foi com este que Rodrigo andou aprendendo as minudências do ofício, e não se tratava apenas de saber escrever, implicava saber contar. Contar os ganhos d’El-Rei, somar-lhe os rendimentos de suas fazendas, do ouro vindo de África, do açúcar das ilhas. E depois havia que saber diminuir destes, os gastos de sua Casa e da corte, do aprovisionamento das naus e das caravelas que partiam rumo ao desconhecido, dos soldos dos seus oficiais e de todos os benefícios que outorgava em tenças e mercês aos fidalgos de sua Casa. Tratava-se ainda de estar familiarizado com os trâmites dos processos, pleitos e acções, contra e a favor do Rei, por assuntos respeitantes às suas terras, rendas e bens. Por vezes, era até necessário ir à Casa dos Contos.
A Casa dos Contos, situada junto à Alfândega, no terreiro central perto do rio Tejo, tinha três grandes salas que comunicavam entre si: uma primeira onde se podiam ver várias mesas lado a lado, com as escrivaninhas, e onde muitos dos escrivães trabalhavam quando não levavam os seus quefazeres para casa; uma segunda onde os vedores da Fazenda despachavam os assuntos com os escrivães que lhes assistiam ali, porque na maior parte das manhãs mandavam-nos chamar a suas casas e ali resolviam os assuntos do Rei; numa terceira estavam guardados todos os livros de registo e despacho. Num dos cantos desta sala era guardado o material de escrita: resmas e cadernos de papel, alguns pergaminhos, frascos de tinta acabada de fazer, tinteiros com rolhas novas, penas por afiar. No Verão, o sol entrava nestas salas pelas janelas abertas, vendo-se o pó que pairava alegremente no ar, por cima da papelada. No Inverno, a luz era coada por telas de pergaminho oleadas que vedavam um pouco o frio e evitavam a chuva, mas que obrigavam a acender as velas dos castiçais colocados em cada mesa antes de terminar o dia. Portanto, na Casa dos Contos escrevia-se e contava-se. Ouvia-se a pena a correr ligeira sobre o papel ou sobre o pergaminho. Ligeira e afiada. O dedo polegar e o indicador, tingidos de tinta, denunciavam o ofício da escrita e de quantos nela perdiam o tempo e ganhavam a vida. E a linha de conta em que entravam os papéis das despesas, furados por uma agulha e assim alinhados em sua ordem e pagamento. E o barulho das pedras do ábaco coloria também o som do garatujar e as surdinas conversadas, assim como os ruídos da rua que chegavam aos ouvidos de todos, peneirados por portas e janelas várias.
Mas este ofício, como muitos, embora tivesse lugar próprio em Lisboa, não se limitava ao espaço da Casa dos Contos. A corte era o Rei e onde o Rei pousava, assentava o governo do reino. Este tinha nos escrivães da Fazenda um dos seus pilares, porque o registo, cada vez mais minucioso, de todas as disposições régias sobre a sua Fazenda era da atribuição do escrivão. E um escrivão de confiança acompanhava o Rei nas suas deslocações e, se fosse hábil, poderia converter-se num homem de seu conselho e aviso, e participar até nas suas acções heróicas. Assim sucedia com Henrique Figueira, que já fora homem de mão de Afonso V (com ele estivera na batalha de Toro) e seria depois de João, o segundo, seu filho, o qual, aclamado no recinto do jogo de futebol de Sintra, em Agosto, imediatamente convocou as Cortes para Novembro desse ano de 1481, em Évora. Henrique, pelo crédito que tinha junto do anterior Rei, converteu-se num dos seus homens de confiança. E Rodrigo pretendia seguir os passos de seu pai: durante a aprendizagem, apresentou-se na Casa dos Contos, dispôs-se a saber sobre todas as propriedades régias, todos os pauis e lezírias, todas as causas e pleitos de justiça, todos os casos de cobranças e penhoras, todos os assuntos que requeriam mais esforço, mais concentração, mais saber, maior argúcia e toda a memória de um homem. Rodrigo Figueira mostrou-se a par das urgências e das pendências e respondeu a todas as perguntas. E viu o seu esforço recompensado quando, pela primeira vez, foi destinado a acompanhar El-Rei a Évora, para as ditas Cortes, nos paços de S. Francisco, onde estaria também seu sabedor pai. Mas Rodrigo, apesar das suas excelentes inclinações, teria ainda de comer muito pão e palmilhar muitos carreiros para atingir o prestígio que o saber ancião confere». In Maria João Câmara, O Pecado e a Honra, Oficina do Livro, Leya, 2012, ISBN 978-989-555-830-8.

Cortesia de OdoLivro/JDACT