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«(…) Nos meses seguintes, Rodrigo
Figueira pouco modificaria a sua rotina, excepto pelo intuito de cumprir o seu
papel de procriador, fazendo visitas regulares ao ventre de sua mulher, onde
esta o recebia quase com indiferença. Como desejava, como todo o homem honrado,
ter descendência, carne da sua carne, sangue do seu sangue, essas visitas eram
regulares mas sem grande exuberância. A Maria bastou-lhe anunciar que estava
pejada para ter o seu sossego. Rodrigo não a procurou mais. E cerca de nove
meses depois do dia do casamento, nasceu Francisco, matando do parto a sua mãe
que, esvaída em sangue, apenas teve tempo para olhar para a criatura que gerara
e sorrir levemente, terminando a sua passagem por esta vida e partindo para uma
melhor. Rodrigo Figueira ficou, apesar de tudo, desconsolado. Havia sentido uma
genuína afeição pela sua mulher. Voltou para sua casa, na rua da Costa do
Castelo, a norte da muralha do castelo de S. Jorge e deixou de vez a casa dos Jácome.
A criança foi entregue aos cuidados de uma ama. Enquanto não crescesse, roçar-se-ia
pelas saias da casa. Seu pai, esse, ficaria para sempre um distante
desconhecido.
Rodrigo Figueira obteve a graça
do Rei no ofício de escrivão da Fazenda por promessa que Sua Alteza havia feito
a seu pai, Henrique Figueira. Foi com este que Rodrigo andou aprendendo as
minudências do ofício, e não se tratava apenas de saber escrever, implicava
saber contar. Contar os ganhos d’El-Rei, somar-lhe os rendimentos de suas
fazendas, do ouro vindo de África, do açúcar das ilhas. E depois havia que
saber diminuir destes, os gastos de sua Casa e da corte, do aprovisionamento
das naus e das caravelas que partiam rumo ao desconhecido, dos soldos dos seus
oficiais e de todos os benefícios que outorgava em tenças e mercês aos fidalgos
de sua Casa. Tratava-se ainda de estar familiarizado com os trâmites dos processos,
pleitos e acções, contra e a favor do Rei, por assuntos respeitantes às suas
terras, rendas e bens. Por vezes, era até necessário ir à Casa dos Contos.
A Casa dos Contos, situada junto à
Alfândega, no terreiro central perto do rio Tejo, tinha três grandes salas que
comunicavam entre si: uma primeira onde se podiam ver várias mesas lado a lado,
com as escrivaninhas, e onde muitos dos escrivães trabalhavam quando não
levavam os seus quefazeres para casa; uma segunda onde os vedores da Fazenda
despachavam os assuntos com os escrivães que lhes assistiam ali, porque na
maior parte das manhãs mandavam-nos chamar a suas casas e ali resolviam os
assuntos do Rei; numa terceira estavam guardados todos os livros de registo e despacho.
Num dos cantos desta sala era guardado o material de escrita: resmas e cadernos
de papel, alguns pergaminhos, frascos de tinta acabada de fazer, tinteiros com
rolhas novas, penas por afiar. No Verão, o sol entrava nestas salas pelas
janelas abertas, vendo-se o pó que pairava alegremente no ar, por cima da papelada.
No Inverno, a luz era coada por telas de pergaminho oleadas que vedavam um
pouco o frio e evitavam a chuva, mas que obrigavam a acender as velas dos castiçais
colocados em cada mesa antes de terminar o dia. Portanto, na Casa dos Contos
escrevia-se e contava-se. Ouvia-se a pena a correr ligeira sobre o papel ou sobre
o pergaminho. Ligeira e afiada. O dedo polegar e o indicador, tingidos de
tinta, denunciavam o ofício da escrita e de quantos nela perdiam o tempo e
ganhavam a vida. E a linha de conta em que entravam os papéis das despesas,
furados por uma agulha e assim alinhados em sua ordem e pagamento. E o barulho
das pedras do ábaco coloria também o som do garatujar e as surdinas conversadas,
assim como os ruídos da rua que chegavam aos ouvidos de todos, peneirados por
portas e janelas várias.
Mas este ofício, como muitos,
embora tivesse lugar próprio em Lisboa, não se limitava ao espaço da Casa dos
Contos. A corte era o Rei e onde o Rei pousava, assentava o governo do reino.
Este tinha nos escrivães da Fazenda um dos seus pilares, porque o registo, cada
vez mais minucioso, de todas as disposições régias sobre a sua Fazenda era da
atribuição do escrivão. E um escrivão de confiança acompanhava o Rei nas suas
deslocações e, se fosse hábil, poderia converter-se num homem de seu conselho e
aviso, e participar até nas suas acções heróicas. Assim sucedia com Henrique
Figueira, que já fora homem de mão de Afonso V (com ele estivera na batalha de
Toro) e seria depois de João, o segundo, seu filho, o qual, aclamado no recinto
do jogo de futebol de Sintra, em Agosto, imediatamente convocou as Cortes para
Novembro desse ano de 1481, em Évora. Henrique, pelo crédito que tinha junto do
anterior Rei, converteu-se num dos seus homens de confiança. E Rodrigo
pretendia seguir os passos de seu pai: durante a aprendizagem, apresentou-se na
Casa dos Contos, dispôs-se a saber sobre todas as propriedades régias, todos os
pauis e lezírias, todas as causas e pleitos de justiça, todos os casos de
cobranças e penhoras, todos os assuntos que requeriam mais esforço, mais
concentração, mais saber, maior argúcia e toda a memória de um homem. Rodrigo
Figueira mostrou-se a par das urgências e das pendências e respondeu a todas as
perguntas. E viu o seu esforço recompensado quando, pela primeira vez, foi
destinado a acompanhar El-Rei a Évora, para as ditas Cortes, nos paços de S.
Francisco, onde estaria também seu sabedor pai. Mas Rodrigo, apesar das suas
excelentes inclinações, teria ainda de comer muito pão e palmilhar muitos
carreiros para atingir o prestígio que o saber ancião confere». In
Maria João Câmara, O Pecado e a Honra, Oficina do Livro, Leya, 2012, ISBN
978-989-555-830-8.
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