segunda-feira, 2 de março de 2020

Memorial do Convento. José Saramago. «El-rei foi a Mafra escolher o sítio onde há-de ser levantado o convento. Ficará neste alto a que chamam da Vela, daqui se vê o mar, correm águas abundantes e dulcíssimas para o futuro pomar e horta…»

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«(…) Mas não terminaram ainda as zumbaias, primeiro foi o cardeal mudar de roupas, e agora reaparece todo de vermelho vestido, como é próprio da sua dignidade, torna a entrar para falar a el-rei, este debaixo do dossel, por duas vezes tira e põe o barrete, por duas vezes faz el-rei o mesmo com o seu chapéu, e à terceira dá quatro passos a recebê-lo, enfim se cobrem ambos, e sentados, um mais acima, outro mais abaixo, dizem algumas poucas palavras, ditas já foram, são horas de despedir, tira chapéu, põe chapéu, mas dali ainda o cardeal vai ao quarto da rainha, onde as continências se repetem, ponto por ponto, até que enfim desce o cardeal à capela onde se vai cantar o Te Deum laudamus, louvado seja Deus que tem de aturar estas invenções.
Chegando a casa, conta Baltasar o que viu a Blimunda, e como se anunciaram luminárias descem ao Rossio depois de cear, mas as tochas são poucas desta vez, ou o vento as apagou, o que importa é que já lá tem o cardeal o seu barrete, dormirá com ele à cabeceira, e se a meio da noite se levantar da cama para o contemplar sem testemunhas, não recriminemos este príncipe da Igreja porque todos somos homens pela banda do orgulho, e um barrete de cardeal, vindo por mão própria de Roma e de propósito feito, se não anda aqui experimentação maliciosa da modéstia dos grandes, é porque afinal merece inteira confiança a humildade deles, humildes realmente não se lavam pés a pobres, como fez e fará o cardeal, como fizeram e farão o rei e a rainha, ora tem Baltasar as solas rotas e os pés sujos, primeira condição para que o cardeal ou rei se ajoelhem um dia diante dele, com toalhas de linho, bacias de prata e água-de-rosas, desde que a outra condição Baltasar satisfaça, que é a de ser ainda mais pobre do que até agora conseguiu ser, e à condição terceira, que é escolherem-no por virtuoso e cliente da virtude. Da tença que pediu, ainda não há sinal, de pouco têm servido as instâncias do padre Bartolomeu Lourenço, seu padrinho, do açougue o mandarão embora não tarda, por qualquer pretexto, mas lá estão os caldos da portaria, as esmolas das irmandades, é difícil morrer de fome em Lisboa, e este povo habituou-se a viver com pouco. Entretanto, nasceu o infante Pedro, que por vir segundo só teve quatro bispos a baptizá-lo, mas ficou a ganhar por ter sido parte no baptismo o cardeal, que ao tempo da sua mana ainda não havia, e veio notícia de que no cerco de Campo Maior morreram muitos soldados inimigos e poucos dos nossos, se amanhã não se disser que foram muitos dos nossos e poucos dos deles, ou ela por ela, que é o que virão a dar as contas quando, ao ir acabar-se o mundo, se contarem os mortos de todos os lados. Baltasar conta a Blimunda casos da sua guerra, e ela segura-lhe o gancho do braço esquerdo como se a verdadeira mão segurasse, é o que ele está sentindo, a memória da sua pele sentindo a pele de Blimunda.
El-rei foi a Mafra escolher o sítio onde há-de ser levantado o convento. Ficará neste alto a que chamam da Vela, daqui se vê o mar, correm águas abundantes e dulcíssimas para o futuro pomar e horta, que não hão-de os franciscanos de cá ser de menos que os cistercienses de Alcobaça em primores de cultivo, a S. Francisco de Assis lhe bastaria um ermo, mas esse era santo e está morto. Oremos.

Outro ferro anda agora no alforge de Sete-Sóis, é a chave da quinta do duque de Aveiro, que tendo vindo ao padre Bartolomeu Lourenço os falados ímanes, mas ainda não as substâncias de que faz segredo, podia enfim adiantar-se a construção da máquina de voar e pôr-se em obra material o contrato que fazia de Baltasar a mão direita do Voador, já que a esquerda não era precisa, tão pouco que o próprio Deus a não tem, consoante declarou o padre, que estudou essas reservadas matérias e há-de saber o que diz. E sendo a Costa do Castelo longe de S. Sebastião da Pedreira, de mais para ir e vir todos os dias, decidiu Blimunda que deixaria a casa para estar onde estivesse Sete-Sóis. Não era a perda grande, um telhado e três paredes inseguras, solidíssima a quarta por ser a muralha do castelo, há tantos séculos implantada, se ninguém por ali passar e disser, Olha uma casa vazia, e dizendo, nela não se instalar, um ano não tardará que as paredes abatam, e o telhado, e então ficarão apenas alguns adobes partidos ou desfeitos em terra no lugar onde viveu Sebastiana Maria de Jesus e onde abriu Blimunda pela primeira vez os olhos para o espectáculo do mundo, porque em jejum nasceu». In José Saramago, Memorial do Convento, Editorial Caminho, O Campo da Palavra, 27ª Edição, 1998, ISBN 972-21-0026-2.

Cortesia de Caminho/JDACT