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Servos
da terra. Ano de 1320. Quinta de Bernat Estanyol Navarcles. Principado da
Catalunha
«(…) Nenhum dos numerosos
camponeses que iam ao castelo se dignou sequer a olhar para ela. Francesca
tentou aproximar-se de alguns, mas afastaram-na. Não se atreveu a regressar a
casa dos pais, porque a mãe a repudiara publicamente, diante do forno do pão, e
assim se viu obrigada a permanecer na proximidade do castelo, como mais um dos
muitos mendigos que se aproximavam das muralhas para procurar por entre o lixo.
O seu único destino parecia ser o de ir passando de mão em mão, a troco das
sobras do rancho do soldado que a tivesse escolhido nesse dia. Chegou Setembro.
Bernat já vira o filho sorrir e gatinhar pela gruta e pelos arredores. No entanto,
as provisões começavam a escassear, e o Inverno estava a chegar. Chegara o
momento de partir.
A cidade estendia-se aos seus pés.
Olha, Arnau, disse Bernat ao menino, que dormia placidamente encostado ao seu
peito, Barcelona. Ali seremos livres. Desde a sua fuga com Arnau, Bernat não
parara de pensar naquela cidade, grande esperança de todos os servos. Bernat
ouvira falar dela sempre que iam trabalhar nas terras do senhor, ou reparar as
muralhas do castelo, ou fazer qualquer outro trabalho de que o senhor
necessitasse. Sempre cuidadosos para que os soldados e o aguazil não os
ouvissem, esses sussurros nunca tinham despertado em Bernat mais do que simples
curiosidade. Era feliz nas suas terras e nunca abandonaria o pai. E também não
poderia fugir com ele. No entanto, depois de ter perdido as suas terras,
quando, durante a noite via dormir o filho, no interior da gruta dos Estany ol,
aqueles comentários tinham começado a ganhar vida, até ecoarem no interior da
gruta. Se se consegue viver lá durante um ano e um dia sem se ser detido pelo
senhor, lembrava-se de ter ouvido, ganha-se a carta de vizinhança e alcança-se
a liberdade. Nessa ocasião, todos os servos tinham guardado silêncio. Bernat
olhara-os: alguns tinham os olhos fechados e os lábios cerrados, outros faziam
que não com a cabeça, e os restantes sorriam, olhando para o céu. E apenas é
preciso viver na cidade?, rompera o silêncio um rapaz, um dos que tinha olhado
para o céu, sonhando certamente com poder quebrar as cadeias que o amarravam à terra.
Porque se pode ganhar a liberdade em Barcelona?
O mais idoso respondera-lhe,
pausadamente: sim, não é preciso nada mais. Basta viver lá durante esse tempo. O
rapaz, com os olhos brilhantes, instara-o a continuar. Barcelona é muito rica.
Durante muitos anos, desde Jaime, o Conquistador, até Pedro, o Grande, os reis
pediram dinheiro à cidade para as suas guerras ou para as suas cortes. Durante
todos esses anos, os cidadãos de Barcelona concederam esses dinheiros, mas em
troca de privilégios especiais, até que o próprio Pedro, o Grande, em guerra com
a Sicília, os resumiu num código... O velho titubeara: kecognoverunt próceres,
creio que assim se chama. É aí que diz que podemos alcançar a liberdade. Barcelona
precisa de trabalhadores, de trabalhadores livres. No dia seguinte, aquele
rapaz não aparecera à hora marcada pelo senhor. E também não o fez no dia
seguinte. O pai, em contrapartida, continuava a trabalhar, em silêncio. Ao fim
de três meses, tinham-no trazido, agrilhoado, caminhando diante de um chicote;
no entanto, todos supuseram ver no seu olhar uma centelha de orgulho». In Ildefonso
Falcones, A Catedral do Mar, 2006, Bertrand Editora, 2009, ISBN
978-972-251-511-5.
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