Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…) Quando saímos de
lá, a garoa tinha vestido as ruas de prata. Era uma da tarde. Fizemos o caminho
de volta sem trocar uma palavra. Na casa de Marina, Germán nos esperava para almoçar.
Não diga nada a Germán sobre isso, por favor, pediu Marina. Não se preocupe. Percebi
que, de qualquer jeito, não saberia explicar o que tinha acontecido. À medida
que nos afastávamos do local, a lembrança daquelas imagens e daquela estufa
sinistra foi-se atenuando. Quando chegamos na Plaza Sarriá, vi que Marina estava
pálida e respirava com dificuldade. Você está bem?, perguntei. Marina disse que
sim, não muito convencida. Sentámo-nos num banco da praça. Ela respirou profundamente
várias vezes, com os olhos fechados. Um bando de pombos saltitava a nossos pés.
Por um instante, temi que Marina fosse desmaiar. De repente, ela abriu os olhos
e sorriu para mim. Não se assuste. Só fiquei um pouco enjoada. Deve ter sido aquele
cheiro. Com certeza. Provavelmente era algum bicho morto. Uma ratazana ou...
Marina concordou com essa hipótese.
Em pouco tempo, a cor voltou a seu rosto. O que está me fazendo falta é comer
alguma coisa. Ande, vamos embora. Germán já deve estar cansado de esperar. Levantamos
e tomámos o caminho de sua casa. Kafka esperava no portão. Olhou para mim com desprezo
e correu para se esfregar nos tornozelos de Marina. Estava eu pensando nas vantagens
de ser um gato, quando reconheci o som daquela voz celestial no gramofone de Germán.
A música se filtrava pelo jardim como uma maré alta. Que música é esta? Léo
Delibes, respondeu Marina. Nem desconfio... Delibes. Um compositor francês, esclareceu
Marina, adivinhando meu desconhecimento. O que ensinam a vocês nessas escolas? Dei
de ombros. E um trecho de uma das óperas dele. Lakmé. E a
voz? Minha mãe. Olhei para ela, perplexo. Sua mãe é cantora de ópera? Marina me
devolveu um olhar impenetrável. Era, respondeu. Ela morreu.
Germán esperava por nós no salão
principal, uma peça ampla e ovalada. Um lustre de lágrimas de cristal pendia do
tecto. O pai de Marina estava vestido quase a rigor. Usava um casaco com colete
e a sua cabeleira prateada estava cuidadosamente penteada para trás. Tive a
impressão de que estava diante de um cavaleiro do final do século. Sentámos à
mesa, posta com toalhas de linho e talheres de prata. E um prazer tê-lo aqui
connosco, Oscar, disse Germán. Não é todos os domingos que temos a honra de tão
grata companhia. A louça era de porcelana, uma verdadeira peça de antiquário. O
cardápio parecia consistir numa sopa de aroma delicioso e pão. Mais nada.
Enquanto Germán me servia antes de todos, compreendi que todo o luxo se devia à
minha presença. Apesar dos talheres de prata, da sopeira de museu e dos luxos
de domingo, aquela casa não tinha dinheiro suficiente para um segundo prato.
Aliás, quanto a não ter, não tinha nem luz. O casarão era iluminado permanentemente
por velas.
Germán deve ter lido o meu pensamento.
Deve ter percebido que não temos electricidade, Oscar. Na verdade, nós não
damos muito crédito aos avanços da ciência moderna. Afinal de contas, que tipo
de ciência é essa, capaz de colocar um homem na lua, mas incapaz de colocar um
pedaço de pão na mesa de cada ser humano? Acho que o problema não está na ciência,
mas naqueles que decidem como empregá-la, sugeri. Germán considerou a minha ideia
e concordou solenemente, não sei se por cortesia ou por convencimento mesmo. Percebo
que você é um tanto filósofo, Oscar. Já leu Schopenliauer? Senti os olhos de
Marina pousados em mim, sugerindo que seguisse os passos de seu pai. Só por
alto, improvisei. Saboreamos a sopa sem falar. Germán sorria amavelmente de vez
em quando e observava a filha com carinho. Algo me dizia que Marina não tinha
muitos amigos e que Germán via com bons olhos a minha presença, embora, no que
me dizia respeito, Schopenliauer podia muito bem ser uma marca de artigos ortopédicos.
Diga-me, Oscar, o que o mundo nos
conta nesses últimos dias? Formulou a pergunta de tal modo que suspeitei que,
se anunciasse o fim da Segunda Guerra Mundial, causaria um grande alvoroço. Não
muito, na verdade, disse, sob a atenta vigilância de Marina. Teremos
eleições... Isso despertou o interesse de Germán, que deteve a dança da sua
colher e avaliou o tema. E você, Oscar? F, de direita ou de esquerda? Óscar e
um anarquista, pai, cortou Marina. O pedaço de pão engasgou na minha garganta.
Não sabia o que significava aquela palavra, mas soava como anarquista de bicicleta.
Germán observou-me detidamente, intrigado. O idealismo da juventude...,
murmurou. É compreensível, é compreensível. Na sua idade, também li Bakunin. É
como o sarampo: enquanto você não passa por isso... Dei uma olhada de ajuda
para Marina, que lambeu os lábios como um gato. Piscou o olho para mim e virou
para o outro lado». In Carlos Ruiz Zafón, Marina, 1999, Planeta Editora, 2010, ISBN 978-989-657-119.1
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