terça-feira, 24 de março de 2020

Isabel de Aragão. Isabel Stilwell. «Circundou o jacente para observar mais de perto a esmoleira, pendurada no cinto, deixando ver, como que à transparência, o contorno dos maravedis de ouro que continha»

Cortesia de wikipedia e jdact

Entre o Céu e o Inferno
Mosteiro de Santa Clara e de Santa Isabel. Primavera de 1330
«Passou o dedo suavemente pelas letras, gravadas a ouro na arca tumular, percorrendo-as como se as escrevesse. Quando a ponta do indicador sentiu a última perna do longo A suspirou, satisfeita, Elisabela.
Os primeiros raios de sol daquela manhã de Primavera, coloridos pelos vitrais, lambiam de luz aquela imagem de si que meticulosamente mestre Pero recriara sob as suas ordens, jacente que um dia se fecharia selando-a no túmulo. Não tinha medo, a morte já não lhe metia medo, estaria pronta quando chegasse a sua hora, sem pressa, mas sem receio. Quase sem receio, corrigiu. Apoiou-se sobre o bordão de peregrina que o arcebispo de Santiago de Compostela lhe oferecera, e que os joelhos de uma mulher de 60 anos já não dispensavam, e observou-se como quem vê o seu reflexo num espelho, vestida com o hábito das clarissas, que usava desde a morte do marido há cinco anos, o cordão de seis nós a cingir-lhe a cintura, o bordão idêntico ao que segurava nas mãos. Decididamente era alta, mas embora os ossos não a deixarem esquecer a passagem dos anos, e a humidade deste lugar quase mergulhado no Mondego não ajudava, as costas mantinham-se direitas, sem sinais de corcunda, num corpo que alargara, apesar dos jejuns. Dez centímetros mais alta do que Dinis, que surpresa fora aquando do primeiro encontro, que embaraço, desconhecendo então que nada nem ninguém desconcertava então então que nada nem ninguém desconcertava o rei de Portugal, tão seguro de si, tão cheio de vida e força, tão disposto a amá-la…, a ela e a todas as outras, pensou. Onde tudo isso já ia, Dinis sepultado em Odivelas, ela, por escolha sua, aqui em Coimbra, neste mosteiro que criara quase de raiz. Quanta má-língua houvera a esse respeito, mas que lhe importava isso agora.
Circundou o jacente para observar mais de perto a esmoleira, pendurada no cinto, deixando ver, como que à transparência, o contorno dos maravedis de ouro que continha. Fora clara também nesse ponto: os que viessem depois dela não se podiam esquecer de que quem tem, dá. Quem manda serve. Os olhos ameaçaram humedecer, mas Isabel tossicou para afastar a emoção. Sempre que se recordava do avô Jaime, de joelhos no chão, a beijar os pés aos pobres que acorriam à alcáçova nos dias santos, estremecia. De admiração e de saudade. Também a ela havia quem lhe chamasse santa, gente saída ao caminho, de mão estendida, procurando tocar-lhe o pano do hábito, como se esperassem um milagre. Suspirou, com impaciência, rodando o corpo para observar de novo a sua réplica. Cobrira o hábito negro com um manto, debruado a ouro, e por cima do véu soqueixado uma grinalda de ouro simples, sem pedras preciosas nem a glória que fora sua durante quarenta e oito anos, e que passara com orgulho para a rainha Beatriz, sua nora, sua filha, que outra coisa pode ser uma criança que se cria desde os quatro anos!
Não abdicara da coroa. Não nos podemos apresentar a Deus e aos homens como aquilo que não fomos, aquilo que não somos, não podia renegar a missão que Ele lhe confiara: o seu destino era o de infanta de Aragão, rainha de Portugal, escolhida por Deus, aclamada pelo povo. Passou a mão pelo pescoço, como que lembrando o colar feito com as safiras, os topázios, os rubis, as esmeraldas e as pérolas que o avô Jaime lhe deixara, cada uma com força própria capaz de curar e de afastar perigos. Guardava-o desde há muito para os partos das suas damas, que o seguravam entre os dedos ou os dentes, afastando dali Belzebu. Vira tantas mulheres perder a vida, ricas ou pobres, o Diabo pouco se importava, na ânsia de roubar uma nova luz que vinha ao mundo. Benzeu-se.
~Vataça, princesa bizantina, prima-irmã, sombra sua desde a infância, contara-lhe que ouvira uma das noviças sussurar às outras que no túmulo da rainha havia mais escudos com as armas de Aragão do que de Portugal. Chamara-a, e a pobre tremera como varas verdes, pedindo-lhe perdão. Não se trata de perdoar, o perdão é para Deus e para o teu confessor. Chamo-te aqui para te ensinar, dissera-lhe. Nada ali estava por acaso: oito escudos, mais de Aragão certamente, porque era aragonês o seu sangue, porque era ali que residiam as suas raízes, fora aquele o primeiro mar que lhe enchera os olhos, as primeiras cítaras que escutara, naquelas catedrais que recebera pela primeira vez o corpo de Cristo, onde pela primeira vez se confessara e recebera a absolvição dos seus pecdos. Apontara-lhe o escudo do império, e perante a perplexidade da rapariga contara-lhe: é o da minha mãe, Constância da Sicília, neta de Frederico II de Hohenstaufen, mas sem lhe dizer como a amara e como sofrera ao afastar-se dela, para nunca mais a voltar a ver». In Isabel Stilwell, Isabel de Aragão, Entre o Céu e o Inferno, Manuscrito, 2017, Editorial Presença, ISBN 978-989-881-886-7.

Cortesia de Manuscrito/EPresença/JDACT