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«(…) João Lourenço, o pobre,
estava ao serviço do Rei, como pajem do livro, benesse que este lhe fizera por
mor da estima que tinha a Henrique Figueira. Mas El-Rei aborrecia-se de ter João
Lourenço por perto e não via nele senão um empecilho. O mordomo-mor que o
ocupasse, o guarda-roupa que o entretivesse, o porteiro que o levasse para
longe..., é que João Lourenço era desastrado e bastante distraído. Era raro
pedir-se-lhe algo que fizesse de fio a pavio, isto quando se não esquecia por
completo da tarefa que deveria desempenhar, levar ou procurar o livro de horas
d'El-Rei, ou segurá-lo para que Sua Alteza lesse, e ficava atarantado, levando
tabefes e cascudos de várias mãos. Mas agora, longe das trafulhices do paço, no
momento do casamento de seu irmão mais velho, estava feliz, saltitava de um pé
para ou outro e parecia que a sua vida corria de feição, com vantagem para
todos. Cruzando os olhares, os irmãos sorriram. Era uma bonomia que nenhum
deles se permitia ter com mais ninguém. Quanto a Henrique, já tomara assento na
igreja, perto do noivo e também aguardava serenamente. Rodrigo Figueira apercebeu-se
da chegada da nubente pelo burburinho que se começou a ouvir na rua. No adro da
igreja o povo aplaudia, gritavam-se votos de felicidade, as crianças em
desatino corriam em todas as direcções. Nesse momento, o noivo ergueu-se,
esperando que a noiva assomasse à porta do templo. A prometida vinha coberta de
um manto de veludo verde-escuro, com capuz debruado a arminho. O vestido num
tom de verde-claro, bordado a prata e pérolas miudinhas, brilhava ao sol. No
momento em que transpôs a entrada da igreja, esse brilho diluiu-se. O cabelo de
Maria, repuxado para trás, estava preso com uma coifa do mesmo tom do vestido,
debruada com uma fiada de pérolas. A coifa segurava um enorme tufo de cabelo
negro que chegava a meio das costas. O orgulho de sua mãe, Inês, fez com que percorresse
o caminho todo, da liteira à porta da igreja, à volta da noiva, com gestos nervosos,
endireitando o vestido aqui, repuxando a cauda, compondo aquela madeixa de
cabelo. Tudo aquilo surgia aos olhos do noivo como um exagero, porque Maria era
enfezada para todas aquelas arrecadas. Parecia muito mais atarracada! Rodrigo Figueira,
sorrindo sempre, suspirou, pedindo a Deus que o ajudasse a suportar aquele dia
que, no seu entender, já ia longo demais.
Maria Jácome tremia como varas verdes.
Entrava na igreja com o coração desvairado de pavor. Sabia desde cedo, e
industriada pela mãe, que o seu destino era o casamento e que nunca poderia
escolher o seu noivo. Não tinha tido pretensões de o fazer, mas, de qualquer
maneira, afigurava-se-lhe difícil dar este passo. Rodrigo Figueira, não sendo
um homem belo, de cabelos cor do sol e com os olhos claros como água (como
alguns que já vira na corte), era um fidalgo bastante atraente, ou razoavelmente
aprazível. O corpo enxuto, mais alto do que o dela, tinha a particularidade de
ter umas mãos compridas. Um rosto equilibrado, olhos de um castanho profundo e
cabelos da mesma cor, cortados a direito e penteados à força de clara de ovo,
para que ficassem junto ao crânio, e com uma franja pequena que lhe chegava
apenas até ao meio da testa. O nariz afilado e o queixo um pouco proeminente
suportavam uma boca carnuda. Sem querer, era precisamente na boca que,
insistentemente, Maria fixava o olhar. Mantendo um sorriso condescendente, onde
faltava a lasca de um dente incisivo, Rodrigo Figueira aguardou que a noiva chegasse
ao altar, onde frei Bartolomeu iniciou de imediato o ritual e celebrou o sacramento
entre os dois resignados noivos.
Seguiu-se um lauto repasto na
casa do pai da noiva, animado por jograis e música. O vinho animou as hostes e
todos folgaram com os noivos, os quais afinal dançaram e também riram com
gosto. Mas olhando com alguma detença para Maria, podia antever-se a sua aflição.
O medo do incógnito, o medo de não conseguir suportar este marido quase
desconhecido, o medo de ter filhos e de não os ter. Quanto ao noivo, não havia
grandes tormentas no seu espírito. Aproveitava o momento de folguedo e deixava
que a festa seguisse o seu curso. Amanhã seria outro dia.
Ao final da tarde, os convivas, encharcados
em suor, de estômago cheio, como poucas vezes o podiam ter, e inebriados pelo
vinho, começaram a exigir que os noivos se recolhessem, batendo ruidosamente
com os pés no chão e tocando com os copos uns nos outros. Ouviam-se gargalhadas
sôfregas dos homens e risinhos escondidos das mulheres mais jovens. As
solteiras olhavam o noivo com curiosidade e os solteiros invejavam-no. O ruído
começou a ser ensurdecedor. Inês fez sinal para que sua filha se preparasse e não
quis ver a sua cara de aflição. Então, Rodrigo Figueira pegou na mão da noiva
com cuidado e, entre caretas e risadas das amigas, momices e gestos obscenos
feitos à socapa pelos amigos, os noivos deixaram o salão e dirigiram-se para o
quarto nupcial.
A câmara, afastada do bulício da
festa, fora limpa e preparada com cuidado pelas criadas. Um candelabro de seis
velas foi aceso por uma delas, que imediatamente se retirou. Cheirava a cera.
Num leito de dossel de rico brocado veneziano, feito com lençóis de linho,
alvos como poucos, um colchão e travesseiros novos e macios, Maria Jácome,
filha da alentejana, deixou que os ventos do Atlântico irrompessem no seu
ventre e terá sido nesse mesmo dia que concebeu o seu primeiro varão. Passava já
da meia-noite e ainda se ouviam os sons de festa: gargalhadas e conversas, música
e danças. De vez em quando, um som de vidro partido ou de escudela no chão, e
mais gargalhadas. Até que os ruídos do festejo começaram a esmorecer. E, no
rescaldo do bródio, apenas os ébrios permaneciam no salão, estendidos nos coxins,
como retratos da sua própria miséria, enquanto os criados aproveitavam para
sonegar os restos de comida espalhados, podendo fazer, eles próprios, o seu
banquete». In Maria João Câmara, O Pecado e a Honra, Oficina do Livro, Leya, 2012,
ISBN 978-989-555-830-8.
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