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Enigma
Alfa. 1501 - 1545
O
que murmuram os canaviais
«(…) Herdou as saboarias paterna,
mas não a provedoria, que o pai vendera para pagar dívidas. Casava assim a irmã
Inês com um homem bem dotado e rico. Uma pontinha de inveja? Ana era mais velha
que Inês e lá se quedava naquele casarão de Santarém, condenada a cuidar do pai
viúvo e dos irmãos, sem a companhia da irmã nem da aia Maria do Céu que Inês levava
consigo. Súbito reio o luto: Inês morria do parto do filho Francisco; o cunhado
casava segunda vez, com uma prima dele, Filipa, de quem teve o filho Fruitos; falecida
a segunda mulher, volta a contrair matrimónio, agora Isabel Vieira que se finou
de peste sem lhe dar geração: e pela quarta vez com Isabel Gomes Limi que gerou
cinco filhos: primeiro Rui como o pai, falecido ainda no berço, o segundo Manuel
e depois Damião, Baltasar e Antónia. A aia ia ficando na casa a cuidar das crianças.
Em mil e quinhentos e onze, Isabel viu-se viúva. Foi então que ao menino Damião,
nascera em mil e quinhentos e dois como o príncipe João, recordava Ana, após o saimento
do pai levou-o para a corte, ainda na idade do eixo e do pião, o meio-irmão
Fruitos, a sugestão de el-rei de quem era moço da guarda-roupa. Aí vão os dois rapazes
a entrar nos Paços da Ribeira. Largo e comprido corredor de portadas de vidro viradas
ao terreiro e, ao fundo, às naus varadas no Tejo. Grossos tocheiros em castiçais
dourados. A espaços certos, pesadas portas de carvalho polido e nos intervalos,
em frente das portadas, grandes espelhos a beberem a luz e a espalharem claridade.
Soam-lhes os passos nas lajes de mármore, os de Fruitos mais largos, os do
irmão miudinhos. Na última porta dois archeiros fardados de librés com galões
de ouro fazem sentinela. Na antecâmara vem recebê-los o guarda-mor: por aqui. Vais
ver o senhor do mundo, segreda Fruitos ao ouvido do irmão.
O rei Emanuel estava sentado em
cadeirão de espaldar, junto a uma mesa com papéis, a ditar suas cartas ao
secretário. Ao vê-los, parou de ditar e ergueu o olhar para o menino. Damião arregalou
os olhos de água. O rei sorria-lhe: aproxima-te. Beija a mão a Sua Alteza, disse-lhe
Fruitos em voz baixa. Damião, num dobrar de joelhos, os olhos cheios de lágrimas,
beijou a mão do rei. Estás espantado, moço? Nunca viste um rei? Que se passa com
teu irmão, Fruitos? Senhor, nosso pai foi a enterrar. E ver-te agora…, a tua
parecença com ele... Até eu, habituado a ti, estou torvado. Vá meu filho, disse
o rei afagando a cabeça do menino, enxuga-me essas lágrimas. Serei para ti um pai,
verás. Ana Macedo recordava estas coisa com o susto na alma e, quando Maria do Céu
se preparava para ingressar num convento… Volta para Santarém, propõe-lhe. A
nossa casa continua a ser a tua. Maria do Céu ripostava: mas, menina… Céu,
estou sozinha, meu paizinho Deus o chamou, meus irmãos na Índia... Cá me soou
que a menina vai casar…
Sacrifiquei os meus vinte anos a tratar
do pai e dos irmãos. Agora, com trinta e cinco, não achas que é tempo de casar?
... e de ter filhos... Mais uma razão para lhe fazeres companhia. Recordaremos os
tempos felizes e tu ajudas-me a tratar das crianças que nascerem… Quem é ele? Um
cavaleiro-fidalgo chamado Simão Vaz. Vem. Contar-te-ei tudo quando estiveres comigo.
Um dia, já casada, foram viver para Lisboa e por essa altura vira Ana o rei pela
primeira vez e logo notara a extrema semelhança dele com o defunto marido da sua
defunta irmã, que ambos Deus fosse servido de ter em sua glória, amém. Homem de
boa estatura de corpo el-rei Emanuel, mais delgado que grosso, a cabeça sobre o
redondo, cabelos castanhos, a testa desanuviada deles, olhos alegres, de um verde
quase branco, alvo, semblante bem-assombrado, risonho nas covas da face e na comissura
dos lábios, os braços carnudos, tão compridos que as mãos lhe passavam abaixo dos
joelhos, as pernas proporcionadas ao corpo...
Tão enleada ficou Ana que nem atentava
na pompa, atabales e trombetas com que el-rei cavalgava a caminho do mosteiro dos
frades jerónimos que andava a ser edificado. Adiante, a perder de vista, ladeada
de mocetões negros com varapaus nas mão, caminhava uma pesada ganga ou rinocerota.
Seguiam-se cinco elefantes e, precedendo el-rei, um alazão, acobertado, em cujas
ancas um caçador pérsio levava uma onça de montaria, que lhe mandara o senhor
de Ormuz». In Fernando Campos, A Sala das Perguntas, 1998, Difel, 1999, ISBN
972-290-437-X.
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