quinta-feira, 19 de março de 2020

O Enigma de Compostela. AJ Barros. «Maurício não queria perder esse espírito de misticismo histórico ao iniciar a grande jornada que tomaria um mês de meditação, visitas a mosteiros, catedrais seculares ricas…»


Cortesia de wikipedia e jdact

A Via Láctea
«(…) Um monge eremita chamado Pelágio começou a ver luzes que vinham das estrelas e iluminavam mais intensamente e de modo anormal um determinado lugar perto da localidade de Iria Flávia, no norte da Espanha. Enquanto via essas luzes, Pelágio ouvia músicas angelicais. Não teve coragem de ir até lá sozinho, mas informou o bispo Teodorico, que passou a ter revelações em sonhos de que, no local iluminado pelas estrelas, estava enterrado o apóstolo São Tiago. Parece que essas luzes foram também observadas por outros pastores e daí o lugar passou a se chamar campus stellarum, ou campo de estrelas, de onde alguns concluem que se originou a palavra compostela. Há referências a outras origens para esse nome, inclusive de que se trata de um topónimo de compositum tellus, ou monte de terra, em referência aos montículos que rodeavam o sepulcro. O bispo Teodorico mandou fazer pesquisas e escavações no local e acabaram descobrindo uma pequena capela com um sepulcro e um oratório. Ao lado da pequena capela havia dois túmulos menores. A descoberta comoveu todo o mundo ocidental. Multidões começaram a se deslocar em direcção à Península Ibérica para venerar o apóstolo, e assim foi-se definindo essa instituição que passou a ser chamada de Caminho de Santiago.
Mas, quem foi São Tiago?
Entre os doze apóstolos, havia dois com o nome de Tiago. Existia Tiago Menor, filho de Alfeu, e Tiago Maior, irmão de São João, o Evangelista. Tiago Maior, ou São Tiago, depois da morte de Cristo, chegou até a Península Ibérica, mas não tendo muito êxito na sua evangelização, retornou à Palestina, onde foi decapitado a mando de Herodes Agripa I, no ano 42 da era cristã. A intenção de Herodes não era apenas conter a nova religião, mas agradar a romanos e judeus, e mandou prender São Tiago e São Pedro. Pedro conseguiu fugir da prisão, com a ajuda de um anjo, que não conseguiu libertar os dois, e Tiago foi morto. Seu corpo foi jogado num terreno baldio, fora da cidade de Jerusalém, onde seria devorado pelos cães e serviria de exemplo para o povo. Dois discípulos de São Tiago, Atanásio e Teodoro, conseguiram recolher o corpo e o levaram através do Mediterrâneo até Finisterre, na Galícia, mais precisamente em Iria Flávia, na desembocadura do Rio Ulla, depois de escaparem milagrosamente da perseguição dos soldados de Herodes.
Esses factos ocorreram no século I, e a descoberta do túmulo no final do primeiro milénio, quando o cristianismo passava por sérias dúvidas, modificou a história ocidental. Tendo chegado à conclusão de que as estrelas iluminavam o túmulo do apóstolo, o bispo Teodorico informou o facto ao rei Alfonso II, o Casto. No ano de 834, juntamente com a família real e toda a sua corte, o rei dirigiu-se de imediato para lá, onde mandou construir uma igreja e declarou São Tiago patrono do seu reino. Foi assim lançada a pedra fundamental de Compostela, com a consagração de um movimento de centenas de milhões, talvez bilhões de pessoas, através dos séculos, como a história nunca tinha visto e não mais viu. A Europa comovida começou a deslocar-se em visita ao túmulo do apóstolo e o Caminho foi-se definindo até receber o seu primeiro guia no ano de 1140, conhecido como Código Calixtino, escrito pelo abade francês Aymeric Picaud. Na verdade, o Código Calixtino é o quinto livro do Líber Sancti Jacobi (Livro de São Tiago), escrito por várias pessoas, mas que leva o nome de Calixtino, em homenagem ao papa Calixto II.

Maurício não queria perder esse espírito de misticismo histórico ao iniciar a grande jornada que tomaria um mês de meditação, visitas a mosteiros, catedrais seculares ricas em artes góticas e românicas, lugares lendários e monumentos, enquanto se deliciaria com o amanhecer ou o entardecer bucólico dos campos. Não podia deixar-se levar por preocupações que não lhe diziam respeito, e procurou viver o espírito da peregrinação. Devido às guerras, às perseguições religiosas e ao materialismo do século XX, o Caminho foi perdendo importância e os sinais que orientavam os peregrinos desapareceram, até que nos anos 1980 o Pároco de O Cebreiro, Elias Valina Sampedro, sinalizou-o com flechas amarelas, que ainda são mantidas e representam a mais segura indicação para o peregrino. Mas essas flechas não são como as sinalizações indiferentes do trânsito. Elas têm vida própria e, depois de alguns dias vendo-as em pedras, árvores, arbustos, muros, casas, latões de lixo, esquinas e encruzilhadas e por elas guiando-se, o peregrino a elas se apega. São fiéis companheiras que trazem emoções e despertam sensações de esperança, como a que sentiu ao ver uma delas apontando para Burguete, um agradável vilarejo três quilómetros adiante». In AJ Barros, O Enigma de Compostela, Luz da Serra, Geração Editorial, 2009, ISBN 978-856-150-127-3.

Cortesia de GEditorial/JDACT