jdact
Lisboa,
15 de Agosto de 1433
«Um
homem na força da vida, de respiração ofegante, rompia por entre o emaranhado
de cavalos, tendas, carroças e gentes, descendo um caminho do monte do castelo de
São Jorge. Vinha ligeiro do alto, levantando poeira, de bolsa com instrumentos
ao ombro. Parecia ter sido assombrado por qualquer visão sobrenatural. Deixem passar,
por mercê, deixem passar, pedia angustiado como se o futuro do reino dependesse
do que ele tinha de fazer. O ar estava repleto de murmúrios, risos misturados com
prantos, pregões diversos, relinchos, latidos, sinos que não paravam de tocar, vindos
das igrejas e dos barcos do Tejo. Há perto de cinquenta anos, mais concretamente
há quarenta e oito anos, que Lisboa não era surpreendida por um dia assim. Nunca
se vira tanta gente nas colinas de altos e baixos, tendas de almocreves constantemente
a montar-se dentro das muralhas, pedintes com chagas à vista, ciganos de faca à
cinta, tanta chegada de nobres e clérigos vindos de diferentes partes do reino.
Os matos rasteiros tinham sido invadidos por quem procurava espaço, as oliveiras
eram disputadas para sombra, antes parecendo muitas e agora poucas, aliviando o
calor duma manhã de Agosto, que já ia alta. Deixem passar, por mercê, preciso de
entrar no Paço Real.
O homem na força da vida passou pelo
arraial das ordens religioso-militares, entre as tendas circulares de Avis
e de Santiago. Reconheceu-as pelas cruzes pintadas no pano, pedindo licença
para passar entre membros das ordens vestidos de igual. Ofegante, desceu a última
colina e conseguiu transpor a porta das muralhas do Paço, hoje engalanadas de panos.
Deixaram-no logo entrar, os homens de armas nem cruzaram as lanças, via-se que
era conhecido. Os de fora ficaram surpreendidos, porque o homem tinha o aspecto
dum judeu, a barba pontiaguda e a cobertura na cabeça não enganavam os olhares,
embora se percebesse que era um judeu privilegiado. Não trazia ao peito, sobre o
estômago, a estrela vermelha de seis pontas e as suas vestes eram luxuosas como
as de um fidalgo.
Quem será aquele judeu, da raça maldita
que matou Nosso Senhor?, perguntava uma peixeira que ali vendia sardinha e outros
assavam em brasas acesas. A inveja nunca escondida fez com que alguém respondesse:
bem sabeis como os judeus gostam de se meter! Este é dos tais que não vive na Judiaria!
É o mestre físico do infante Duarle, um sábio formado pela Universidade respondeu
o carniceiro real, que também entrava no Paço com uma carroça repleta de carnes
que trazia do cais do Tejo. Santa Maria! O Rei estará doente?, perguntou uma voz
entre a multidão que ficou sem resposta. Por um lado, ninguém sabia, por outro
não se percebeu se alguém respondeu. Quem fez a pergunta também não estava à espera
que lhe respondessem.
Um vago medo invadia todos e o silêncio
reinava nalgumas bocas. O ar parecia carregado de malefícios e de mistérios. O
corpo do Rei João I jazia num caixão no meio da Sé, que não ficava muito distante,
rodeado de preces e visitantes consternados. Era voz corrente que, na hora em
que o Rei fechara os olhos para sempre, o Sol se eclipsara durante duas
horas, tal como acontecera na altura da morte da rainha dona Filipa de Lencastre,
em 1415. Para além deste fenómeno, alguém começara a fazer contas e a divulgá-las
pela cidade, contas interpretadas como mágicas. O Rei fora logo morrer a 14 de
Agosto, o mesmo dia da Batalha de Aljubarrota, que ocorrera precisamente há
48 anos atrás, quando ele venceu o exército castelhano e perpetuou a
independência portuguesa.
Também se dizia que adivinhara a sua
morte, que se preparara como quem vai para uma viagem. Até mandara desfazer a barba,
porque seria visto por muita gente e queria parecer bem. Outros mais sabedores espalhavam
a coincidência do dia da sua morte ser o mesmo dia em que nascera. Eram
prodígios e sinais a mais, nunca dantes vistos. Ele deixara este vale de lágrimas
precisamente no dia em que completava 77 anos, dois setes». In
Fina D’Armada, O Segredo da Rainha Velha, Ésquilo, 2008, ISBN
978-989-809-246-5.
Cortesia de Ésquilo/JDACT