quinta-feira, 12 de março de 2020

O Pecado e a Honra. Maria João Câmara. «Mas nem todos os nobres assim o fizeram com ânimo e obediência. O duque de Bragança, Fernando, e seus irmãos, houveram esta obrigação por áspera e prejudicial às suas honras…»

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«(…) Ao vergar-se, Lucena pôde ver um pingo de suor escorrer de seu nariz e cair na tábua do soalho. Depois, a um gesto de dom João, endireitou-se tão depressa quanto conseguiu e dirigiu-se para o lugar que lhe competia, atrás do trono, limpando com a manga do gibão o suor que teimava em cair-lhe sobre a testa enrugada. As palavras encomendadas ao letrado eram muito claras. As prerrogativas reais eram para ser mantidas. As suas leis obedecidas. E quem contra elas quisesse tomar peitos haver-se-ia com a sua justiça. O arauto anunciou então a cerimónia que se seguiria: o preito e a menagem. Imediatamente, um dos conselheiros desenrolou um pergaminho que tinha na mão e, curvando-se ao lado do trono e endireitando-se novamente, estendeu-o e virou-o na direcção da assistência, para que cada um pudesse ler as palavras ali escritas quando se ajoelhasse frente a dom João. Se não soubesse ler, que era o caso da maioria, repetiria as palavras ditas pelo conselheiro.
E todos se prepararam para o que consideravam uma grande honra: era a El-Rei de Portugal que prestavam preito e era através dele que defenderiam o reino e, se fosse caso disso, por ele dariam a sua própria vida. Formou-se grande fila ao centro da grande sala. O Rei sentado no trono e cada vassalo de joelhos diante dele, humilde e submisso, as mãos juntas e metidas entre as mãos d’El-Rei, proferindo os termos da menagem, que assim se iniciavam: muito alto, muito excelente e poderoso, meu verdadeiro e natural Rei e Senhor, eu vos faço preito e menagem pelo vosso castelo de que ora me encarregais… Vos faço preito e menagem pela alcaidaria, pelo senhorio. Vos faço preito, meu Rei e meu Senhor, porque sois como um pai, um guia, uma luz de sabedoria e de governo. E ajoelhavam-se os que vinham do Norte e os que vinham do Sul. Os que vinham dos lados do mar e os que vinham dos lados de Castela. Todos, colocando as suas mãos entre as do monarca, lhe prestavam vassalagem: … e nele farei a guerra e manterei a paz segundo por vós Senhor me for ordenado… E mesmo os grandes do reino, que com muitas mercês haviam agraciado os reis anteriores, se ajoelharam frente ao rei João, o segundo de seu nome.
Mas nem todos os nobres assim o fizeram com ânimo e obediência. O duque de Bragança, Fernando, e seus irmãos, houveram esta obrigação por áspera e prejudicial às suas honras, pois nem seus pais nem seus avós haviam feito menagem aos reis anteriores! Tinham recebido o privilégio de não terem de prestar este juramento, uma vez que os seus antepassados, tanto que haviam sido fiéis aos reis antigos, que estes haviam por fiéis aos seus descendentes, já que pelo sangue se herdam as virtudes, a honra e o carácter dos antepassados. O duque, havendo-se por apoucado, sentiu-se muito enfadado: El-Rei o não considerara! Humilhara-o perante os seus pares e perante os seus parentes! Por esta razão, enquanto uns se ajoelhavam na justa obediência, ouviu-se um burburinho. Já os Braganças murmuravam entre si contra aquela afronta à família que descendia do condestável Nun’Alvares e que, por seus feitos, havia livrado o reino das garras de Castela, quase cem anos antes! E por suas mãos, as mãos de um herói, haviam os seus descendentes recebido este privilégio de não deverem prestar menagem por castelo nenhum, por nenhuma justiça, por senhorio algum! E agora, outros grandes do reino que haviam jurado a todos os reis por suas linhagens desde Afonso, o Conquistador, murmuravam também sobre se deveriam eles voltar a fazê-lo a João?» In Maria João Câmara, O Pecado e a Honra, Oficina do Livro, Leya, 2012, ISBN 978-989-555-830-8.

Cortesia de OdoLivro/JDACT