quarta-feira, 11 de março de 2020

A Casa do Pó. Fernando Campos. «O bispo de Ceuta, Frei Diogo Silva, que quatro anos atrás havia publicado ali aquele monitório em que se discriminavam as culpas sob alçada da Inquisição (maldita)..., lembrava-me?»

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A Letra Pitagórica
«(…) De repente o ardor das duas mulheres esmoreceu e eu compreendi que elas eram seres muito naturais e instintivos, cujo cio, como nos animais, tinha períodos certos. O horizonte dos seus interesses era bem estreito: limitava-se à satisfação das necessidades da sobrevivência, as do estômago, para manter a vida, as do sexo, para continuar a espécie. Os apelos espirituais eram nulos: iam à igreja por rotina e por medo de não sabiam quê, acreditavam em Deus, rezavam, mas em tudo isso a fé confundia-se com a crendice e a religião era mais um meio de procurar pôr o Eterno ao serviço dos interesses pessoais, de estar de bem com Deus e com os homens. Entendi então que falar de pecado em pessoas como elas não tinha qualquer razão de ser. Quanto a mim, talvez nunca ninguém tenha entendido melhor do que eu aquele famoso dito de Ovídio, na sua Ars Amatoria, de que post coitum omne animal triste. Onde estavam os arroubos da alma, os vôos do espírito, as subtilezas voláteis dos sentimentos sem mácula? Ai de mim, que falar de pecado a meu respeito tinha, isso sim, mais que razão de ser. Sentia a necessidade de um banho lustral por dentro, por todos os recônditos insuspeitados da alma e, embora estivesse grato àquelas mulheres que me acolheram em sua casa, me trataram na doença, me deram o seu amor que mais não podiam dar, era sobretudo por me terem mostrado não ser aquele o meu caminho que eu as não poderia jamais esquecer. Quando, já completamente refeita a saúde, me despedi delas, choraram abraçadas a mim e por entre beijos obrigaram-me a prometer-lhes que as iria ver de vez em quando, o que eu fiz mais que uma ocasião, sem no entanto repetirmos as nossas relações amorosas. Apesar da sua rudeza e nenhuma instrução, possuíam uma fina sensibilidade para estes pruridos de consciência: não me tornaram a provocar e dedicaram-me uma daquelas raras amizades, perfume de alma que tudo em derredor embalsama e purifica.
Diogo veio buscar-me. Como estás? Bem. A cidade sofreu muito com o terremoto?, lembrei-me. Quase o não sentiu. Tudo normal? Lá, quase tudo. Já te contarei. E tu?, perguntou olhando-me intencionalmente nos olhos. Tudo normal, respondi com um sorriso. Agora está tudo bem. Respirou fundo e, enquanto caminhávamos, punha-me ao corrente do que se passava em Évora, nessa altura centro das atenções da nação não só por lá ter fixado assento a corte, mas pelos sucessos importantes que anunciavam grandes mudanças. O bispo de Ceuta, Frei Diogo Silva, que quatro anos atrás havia publicado ali aquele monitório em que se discriminavam as culpas sob alçada da Inquisição (maldita)..., lembrava-me? Sim, lembrava-me muito bem: o judaizar, ter práticas luteranas e maometanas, fazer feitiçarias, sortilégios... Pois fora substituído em seu cargo de inquisidor-mor, imaginasse eu por quem... Por quem?... pelo arcebispo de Braga, por dom Henrique. O rei nomeara o irmão inquisidor-geral. Sabia eu o que isso significava?... Se sabia! Isso queria dizer que João III estava a levar a melhor na sua pertinácia junto do papa Paulo para que se estabelecesse em Portugal uma Inquisição (maldita) centralizada e toda-poderosa como em Espanha. Para que se estabelecesse? Já estava praticamente estabelecida. Os bispos, a quem incumbia até aí o assunto, já nada contavam para o efeito. In nomine tudo se centralizava em Roma; in fato, no rei e nos homens da sua confiança, no arcebispo Henrique. Presumo que sobretudo os cristãos-novos estejam receosos.
Receosos? Atemorizados! Constava que o êxodo do país estava a crescer dia a dia. A primeira medida de dom Henrique fora nomear um Conselho Geral. Olhasse os nomes: Frei João Soares, o Dr. Rui Pinheiro, o Dr. Rui Carvalho, o João Melo. Este sobretudo parecia que, em Lisboa, já vinha com ameaças de ir aos portos de mar, entrar nos barcos que estavam para levantar ferro e tirar de lá todos os fugitivos para os queimar vivos...
Não duvido de que o faça. Pobre gente! Não percebo esta sanha contra eles... No seu tempo, el-rei Manuel I, segundo ouvi dizer, utilizava todos os subterfúgios para não pôr em prática a expulsão dos judeus, a que fora obrigado por força de uma cláusula do seu contrato de casamento com a princesa espanhola dona Isabel, filha dos Reis Católicos. Obrigou-os a baptizarem-se, dificultava-lhes o embarque para fora do país... Queria que eles cá ficassem, é o que é... Agora todo este fervor religioso do rei João III... Mais fervoroso que o do papa, não há que ver. Não entendo nada. Sim, é difícil. Mas uma coisa é certa: é que, por detrás de toda esta fachada inquisitorial que se está a erguer, e sabe Deus aonde levará o fanatismo dos homens, há forças obscuras, o poder do dinheiro, as ambições de hegemonias, mando, privilégios, que não vêem com bons olhos a crescente importância da burguesia judaica e a sua tendência para misturar o seu sangue ao dos cristãos-velhos». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT