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O
Factor Bellucci
«(…) A maioria das pessoas que
ganham o primeiro prémio do euromilhões fica extasiada de felicidade, se bem
que depois não faça a menor ideia do que fazer com aquele dinheiro todo, para
além das compras da ordem, um carrinho, uma casinha e tal. Eu senti-me
exactamente da mesma maneira. Fui promovido sem o merecer, tive sucesso com as
mulheres sem fazer nada de especial para isso e, bem, geri a minha nova
situação de um modo desastrado. A parte boa é que pelo menos agora já não
andava a boiar na pasmaceira, já não era o cromo do sofá e o meu filho já não
precisava de esmurrar os colegas porque os pais deles eram melhores do que o
dele. Mas novas questões se colocavam. Como desfazer a embrulhada em que me
metera ao iniciar o caso com Cátia e, já agora, como resolver o caso com a
minha segunda namorada do momento, que me obrigava a entrar em autênticas
loucuras por umas horas de sexo, sexo bom, há que admiti-lo; perguntava-me se
queria ficar com uma, com as duas ou com nenhuma; como salvar o meu casamento,
se é que, no fundo, o queria mesmo salvar; como encontrar um equilíbrio, de
maneira a conseguir ter rendimento no banco e provar que a promoção para o meu novo
cargo não havia sido afinal um mero erro de casting. Eu precisava de me organizar e isso, conforme
vim a descobrir, era o mais difícil de tudo. Que diabo, de repente eu tinha
três mulheres, um filho, um gabinete novo e carro de empresa. O que é que
poderia querer mais? Talvez um pouco da paz de antigamente?
Agora, passados uns anos, depois
de tudo acontecer, não garanto que seja muito mais feliz, mas sou um homem
diferente. Perdi coisas boas, ganhei outras igualmente boas. Passei por uma fase
difícil, tomei decisões erradas e redimi-me com outras tantas correctas. Já não
me abrigo no conforto do meu sofá, agarrado ao comando da televisão,
anestesiado, sem me permitir pensar, nem que vagamente. Consegui libertar-me
dos meus medos, das minhas inseguranças e prefiro acreditar que a felicidade se
vai construindo desde que nos esforcemos por isso. Descobri que quando estamos
satisfeitos com o pouco que temos e já não nos abana a vontade de conquistar
nada, já não nos interessamos por nada, estamos metidos num bom sarilho. Contudo,
houve alturas em que morri de saudades de pelo menos uma parte dessa minha existência
fácil, prostrada e desinteressante. A vida é mesmo assim, não é? Somos tentados
pelo desconhecido e mordidos pela nostalgia do passado.
Mer…, resmungou Zé, ao ver pela
manhã a sua fraca figura reflectida no espelho da casa de banho, enquanto se
coçava distraidamente entre as pernas, estou velho. Tinha trinta e cinco anos.
Ouviu Graça a refilar com o miúdo para que se vestisse, mas não ligou. Era
apenas a música de fundo do costume. Passou o rosto por água para se barbear.
Contemplou com tristeza a barriga e encolheu-a num esforço ilusório para se
fazer magro, até lhe faltar o ar e ser obrigado a deixar cair as banhas novamente
para o seu estado natural. Inclinou-se um pouco para a frente e passou uma mão
impotente pelo cabelo. Zé, pensou, há uma auto-estrada a avançar pela tua cabeça. Não
passava de um princípio de careca, a partir de trás, mas achou que já era uma
catástrofe. Fez um esgar de desânimo e encolheu os ombros. Depois começou a espalhar
lentamente o sabão pelo rosto para desfazer a barba com a mesma lâmina
descartável que usava havia uma semana, porque só de manhã reparava que se
tinha esquecido de comprar lâminas novas na véspera. Graça surpreendeu-o com
três pancadas fortes na porta da casa de banho.
Vais chegar atrasado!, ouviu-a
dizer do outro lado da porta. Mer…, rosnou, vendo que se cortara no queixo com
o sobressalto. Sim, querida..., suspirou. Um fio de sangue escorreu-lhe pela
cara e, sempre que isso acontecia, era um sarilho. Agora, aquela porcaria nunca
mais ia parar. Quando se cortava a desfazer a barba, ia para o banco com papelinhos
colados à cara e tinha de ouvir piadinhas estúpidas dos colegas logo pela
manhã. Mas hoje não, hoje haveria de se lembrar de tirar o papelinho antes de
chegar ao escritório. Saiu do banho irritado com as pequenas gotas de sangue
que pingaram do queixo para o tapete, manchando-o de vermelho-vivo. Rasgou um
bocadinho de papel higiénico e colocou-o na ferida para a estancar. Pôs o
relógio no pulso. Oito e trinta da manhã. Não queria chegar atrasado, prometeu
a si próprio que não se atrasaria. E cumpriu. Nove e trinta. Não só chegara a
horas, como também antes do sacana do chefe. Zé sentou-se à secretária, ligou o
computador, espalhou uns papéis por cima da mesa e recostou-se na cadeira a desfrutar
daquela pequena vitória. Ó Figueiredo, chamou-o o colega, o Pestana, um
cretino, na opinião de Zé. Eu sei que tens cara de cu, mas escusavas de deixar
bocados de papel higiénico agarrados ao queixo quando a limpas. Mer…!, pensou, esqueci-me outra vez do papelinho. Ah,
ah, que engraçado, respondeu-lhe, azedo. Cortei-me a desfazer a barba. Cara de cu, o caraças!» In
Tiago Rebelo, Eu e as Mulheres da Minha Vida, 2003, Edições ASA, 2016, ISBN
978-989-233-501-8.
Cortesia de EASA/JDACT