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«O que diferencia um tronco flutuante
de uma barca feita da mesma madeira
é que esta última tem remos e pode
vogar contra a corrente»
«Conservar a infância é levar dentro de si,
desperta e pronta, uma misteriosa lâmpada capaz de conduzir a luz até à alma
das coisas». In Leonardo Coimbra
«Toda a luz desenvolve no seu seio um núcleo
poderoso de trevas, tal como a sombra desenvolve um ponto de luz». In
António Cândido Franco
As
três colunas da Cultura Portuguesa
Da
Geração de 70 à Renascença Portuguesa
«[…]
PAL - Temos aí o percurso da geração de 70 até à
Renascença, onde Teixeira de Pascoaes regressa às tradições.
ACF - Sim. Por
essa razão é que eu lhe chamava a atenção para a existência dessa geração
intermédia, que é a de 90. Entre um Leonardo Coimbra e um Antero filósofo, há
um Sampaio Bruno e entre um Pascoaes e um Eça, há um Raul Brandão, como entre
um Junqueira e um Mário Beirão há um António Nobre. Quando nós vemos a prosa de
um Eça, sobretudo até aos anos 90, e a prosa de um Pascoaes, sobretudo depois
de 1921, nós sentimos que aquilo são dois mundos incomunicáveis. Mas eles têm,
ainda assim, um fio de ligação.
PAL - No século XX temos as tais três colunas que
expressa no artigo que citei de início. Poderia transmitir em síntese essa sua
análise...
ACF - No fundo é
tentar organizar com um mínimo de inteligibilidade e de clareza aquilo que foi
a vida cultural portuguesa no último século, tentando encontrar famílias de
pensamento, de ideias, de estilos. Daí esta ideia de três correntes, três
famílias ou três colunas, que dão corpo à cultura portuguesa no século XX. A
Renascença parece-me a linha central, porque é aquela que arranca do século
anterior, arrancando raízes na geração de 70, melhor, no cruzamento desta
geração com a seguinte, a geração de 90, Eça e Bruno, Junqueira e Nobre. São
estes casamentos que vão dar origem ao nascimento de uma nova camada geracional
que será, no momento re-fundador da República, a da Renascença Portuguesa. Mas,
evidentemente, a Renascença Portuguesa não é o único corpo cultural do século
passado em Portugal. Há, pelo menos, duas outras famílias que se destacam, a
dos integralistas e a dos seareiros. De qualquer modo, ambas deitam raízes na
Renascença, funcionando quase como dissidências. Portanto, a Renascença é um
tronco, não sendo uma raiz; a raiz são as origens diversificadas de que falámos
e que estão lá na parte final do nosso século XIX. De qualquer modo, a
Renascença é um tronco suficientemente forte para depois se desmembrar em dois
ramos, um à direita e outro à esquerda, e daí as três colunas. O ramo da
direita é o Integralismo Lusitano, como o da esquerda é o da Seara Nova. No primeiro,
pontifica o António Sardinha, no segundo, o António Sérgio. Comecemos pela
ramada da direita. Há afinidades fortes de Sardinha e da Renascença, sobretudo
na tentativa de compreender Portugal. Sardinha começa por ser um republicano
entusiasta em 1910, depressa se tornando um desiludido. Transforma-se num
pensador da portugalidade, que é um conceito criado por ele, e dá origem ao
Integralismo Lusitano que vai constituir a raiz cultural e política do Estado
Novo. Todo, ou quase todo, o pensamento monárquico se reencontra no
Integralismo depois da queda da monarquia. Para os monárquicos, o 5 de Outubro
representou uma espécie de apocalipse, um fim de mundo; houve depois dele a
necessidade de readequar o pensamento monárquico à nova situação que era a
República.
PAL - Tem a raiz nos absolutistas, em parte...
ACF - O
Integralismo é curioso. Não sou um especialista do assunto, nem li o Sardinha
todo de uma ponta a outra, ou pelo menos não o tenho todo presente, mas mesmo
assim dá para perceber o que se passou ali. O ponto de partida dele é o
seguinte: uma monarquia que tivesse sido forte nunca justificaria uma
república. Logo o único caminho para reabilitar o pensamento monárquico era pôr
em causa tudo aquilo que estava na origem da revolução republicana, quer dizer
a monarquia que então existia, liberal e constitucional. Daí o integralismo se
ter aproximado muito, logo desde a origem, da linhagem política miguelista,
afastando-se da tradição liberal. As duas linhagens da monarquia portuguesa
eram: a constitucional, de raiz democrática, e a miguelista, de sinal absolutista,
que fora vencida pela Convenção de Évoramonte, em Maio de 1834. Logo o
Integralismo vai reabilitar não só a monarquia, mas aquilo que a monarquia não
tinha sido, ou não pudera ser com a derrota de dom Miguel. Percebe-se bem nesta
origem anti-liberal e anti-constitucional do Integralismo a raiz do Estado Novo
posterior, com a proibição do pluralismo político e a ditadura de um único
homem. O salazarismo acabou por ser, com a paternidade Integralista, o retorno
dessa nebulosa recalcada que era o miguelismo derrotado de 1834 e que fora
aparentemente arrumado e esquecido, a partir de 1850, com a Regeneração
fontista. Não vale a pena, porém, esquematizar demais, porque tudo isto é muito
mais complexo, pois implica uma leitura do país, em muitos aspectos, original.
É uma leitura com afinidades com Alexandre Herculano e até com certos
republicanos, como Henriques Nogueira, sobretudo a partir do municipalismo da
Idade Média. É certo que se implica sempre nisso, e de uma forma obsessiva que
se torna prioritária, um pensamento reaccionário assumido. É o pensamento da
coluna da direita.
PAL - Já se pode falar de extrema-direita?
ACF - Pode.
Exactamente nestas franjas da monarquia anti-constitucional que o Integralismo
vai começando a criar. O Integralismo Lusitano capta muito rapidamente fatias
importantíssimas da população portuguesa, sobretudo intelectuais e jovens.
Essas fatias são muito heterogéneas entre si, indo desde os católicos simples e
apolíticos aos anti-liberais militantes, de tradição absolutista, que eram
residuais, mas continuavam a existir. É nesse caldo que se forma a moderna
extrema-direita em Portugal.
PAL - Sobretudo, graças à desordem do país.
ACF - Claro. Há
sempre nas situações caóticas um pensamento de reacção. Esse pensamento tem
tendência a tornar-se facilmente popular. Ora, o António Sardinha, numa
situação de dificuldades crescentes, que se agravam a partir de 1914 com a
Grande Guerra, cria um pensamento com o objectivo de demolir a República e daí
o seu favor rápido.
PAL - É um propagandista...
ACF - É um
propagandista, claramente. É um homem de Partido. Agora, caso curioso, António
Sardinha morre em 1925, antes da revolução do Estado Novo e, portanto, antes da
vitória das suas ideias. É por isso que o António Sardinha permanece numa
margem indefinida. Há muito boa gente que sempre me disse que o Sardinha nunca
teria aderido ao Estado Novo». In Paulo Alexandre Loução, A Alma Secreta de
Portugal, Ésquilo Edições & Multimédia, 2004, ISBN 972-860-515-3.
Cortesia de
Ésquilo/JDACT