jdact
Servos
da terra. Ano de 1320. Quinta de Bernat Estanyol Navarcles. Principado da
Catalunha
«(…) O senhor ordenou que o teu
filho permanecesse aqui, ouviu o aprendiz a dizer-lhe. No princípio, a tua
mulher vinha aqui várias vezes por dia e acalmava-o, dando-lhe de mamar, Bernat,
com lágrimas nos olhos, apertava o pequeno corpinho contra o peito, tentando insuflar-lhe vida. Primeiro, foi o
aguazil, prosseguiu o rapaz. A tua mulher resistiu e gritou... Eu vi, porque
estava na forja, apontou para uma abertura nas tábuas de madeira da parede. Mas
o aguazil é muito forte... Quando acabou, entrou o senhor, acompanhado por
alguns soldados. A tua mulher estava caída no chão, e o senhor começou a rir-se
dela. Depois, riram-se todos. A partir de então, cada vez que a tua mulher
vinha amamentar o teu filho, os soldados esperavam-na junto à porta. Ela não se
podia opor. Desde há alguns dias que já mal cá vem. Os soldados..., qualquer um
deles, apanham-na assim que sai dos aposentos de dona Catarina. E já não tem tempo
para vir aqui. Às vezes, o senhor vê-os, mas a única coisa que faz é rir-se. Sem
pensar duas vezes, Bernat levantou a camisa e meteu debaixo dela o corpito do
filho; depois, sobre a camisa, disfarçou o vulto com o pão que lhe restava. O
pequenito nem se mexeu. O aprendiz levantou-se bruscamente, enquanto Bernat se
aproximava da porta. O senhor proibiu. Não podes! Larga-me, rapaz! O jovem
tentou antecipar-se. Bernat não hesitou. Segurando com uma mão o pão e o pequeno
Arnau, agarrou com a outra uma barra de ferro que estava pendurada na parede e voltou-se
com um movimento desesperado. A barra atingiu o rapaz na cabeça precisamente no
momento em que este ia a sair do cubículo. O rapaz caiu no chão sem ter tempo
de pronunciar uma palavra. Bernat nem sequer olhou para ele. Limitou-se a sair
e fechar a porta atrás de si. Não teve qualquer problema em sair do castelo de
Llorenç de Bellera. Ninguém poderia imaginar que, debaixo do pão, Bernat levava
o corpo magro do seu filho. Só depois de ter passado pela porta do castelo
pensou em Francesca e nos soldados. Indignado, recriminou-a mentalmente por ela
não ter sequer tentado comunicar com ele, avisá-lo do perigo que o filho
corria, que não tivesse lutado por Arnau... Bernat apertou o corpo do filho e
pensou na mãe, que era violada pelos soldados enquanto Arnau esperava a morte
deitado sobre uns troncos de madeira ascorosos.
Quanto tempo demorariam a dar com
o rapaz que ele tinha derrubado? Estaria morto? Tinha fechado a porta do cubículo?
As perguntas assaltavam Bernat enquanto percorria o caminho de regresso. Sim,
fechara-a. Recordava-se vagamente de o ter feito. Assim que dobrou a primeira
esquina do caminho serpenteante que levava ao castelo e este desapareceu
momentaneamente da sua vista, Bernat destapou o filho; os olhos de Arnau, apagados,
pareciam perdidos. Pesava menos que o pão! Os seus bracinhos e pernas...
Revolveu-se-lhe o estômago e fez-se-lhe um nó na garganta. As lágrimas começaram
a correr-lhe. Disse a si próprio que não era o momento para chorar. Sabia que
os perseguiriam, que lhes lançariam os cães, mas..., de que lhe servia fugir,
se o menino não sobreviveria? Bernat afastou-se do caminho e escondeu-se atrás
de uns matagais. Ajoelhou-se, deixou o pão no chão e agarrou Arnau com ambas as
mãos, para o erguer até ao rosto. A criança permaneceu inerte diante dos seus
olhos, com a cabecita caída, pendurada. Arnau!, sussurrou Bernat. Sacudiu-o com
suavidade, uma e outra vez. Os olhitos da criança moveram-se, para olhar para
ele. Com o rosto cheio de lágrimas, Bernat deu-se conta de que o menino nem
sequer tinha forças para chorar. Deitou-o sobre um dos braços, esmigalhou um
pedacinho de pão, molhou-o com saliva e aproximou-o da boca da criança. Arnau não
reagiu, mas Bernat insistiu até que conseguiu meter-lho na pequena boca. Esperou.
Engole, meu filho, suplicou-lhe. Os lábios de Bernat tremeram perante uma quase
imperceptível contracção da garganta de Arnau. Esmagou mais pão e repetiu com
ansiedade a operação. Arnau tornou a engolir, e fê-lo mais sete vezes. Vamos
sair desta, disse-lhe. Prometo-te. Bernat regressou ao caminho. Continuava tudo
calmo. Decerto ainda não tinham descoberto o rapaz; caso contrário, teria
ouvido algazarra. Por um momento, pensou em Llorenç de Bellera: cruel, ruim,
implacável. Que satisfação lhe daria dar caça a um Estany ol!» In
Ildefonso Falcones, A Catedral do Mar, 2006, Bertrand Editora, 2009, ISBN
978-972-251-511-5.
Cortesia de BertrandE/JDACT