quinta-feira, 26 de março de 2020

A Catedral do Mar. Ildefonso Falcones. «Ajoelhou-se, deixou o pão no chão e agarrou Arnau com ambas as mãos, para o erguer até ao rosto. A criança permaneceu inerte diante dos seus olhos, com a cabecita caída, pendurada»

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Servos da terra. Ano de 1320. Quinta de Bernat Estanyol Navarcles. Principado da Catalunha
«(…) O senhor ordenou que o teu filho permanecesse aqui, ouviu o aprendiz a dizer-lhe. No princípio, a tua mulher vinha aqui várias vezes por dia e acalmava-o, dando-lhe de mamar, Bernat, com lágrimas nos olhos, apertava o pequeno corpinho contra o peito,  tentando insuflar-lhe vida. Primeiro, foi o aguazil, prosseguiu o rapaz. A tua mulher resistiu e gritou... Eu vi, porque estava na forja, apontou para uma abertura nas tábuas de madeira da parede. Mas o aguazil é muito forte... Quando acabou, entrou o senhor, acompanhado por alguns soldados. A tua mulher estava caída no chão, e o senhor começou a rir-se dela. Depois, riram-se todos. A partir de então, cada vez que a tua mulher vinha amamentar o teu filho, os soldados esperavam-na junto à porta. Ela não se podia opor. Desde há alguns dias que já mal cá vem. Os soldados..., qualquer um deles, apanham-na assim que sai dos aposentos de dona Catarina. E já não tem tempo para vir aqui. Às vezes, o senhor vê-os, mas a única coisa que faz é rir-se. Sem pensar duas vezes, Bernat levantou a camisa e meteu debaixo dela o corpito do filho; depois, sobre a camisa, disfarçou o vulto com o pão que lhe restava. O pequenito nem se mexeu. O aprendiz levantou-se bruscamente, enquanto Bernat se aproximava da porta. O senhor proibiu. Não podes! Larga-me, rapaz! O jovem tentou antecipar-se. Bernat não hesitou. Segurando com uma mão o pão e o pequeno Arnau, agarrou com a outra uma barra de ferro que estava pendurada na parede e voltou-se com um movimento desesperado. A barra atingiu o rapaz na cabeça precisamente no momento em que este ia a sair do cubículo. O rapaz caiu no chão sem ter tempo de pronunciar uma palavra. Bernat nem sequer olhou para ele. Limitou-se a sair e fechar a porta atrás de si. Não teve qualquer problema em sair do castelo de Llorenç de Bellera. Ninguém poderia imaginar que, debaixo do pão, Bernat levava o corpo magro do seu filho. Só depois de ter passado pela porta do castelo pensou em Francesca e nos soldados. Indignado, recriminou-a mentalmente por ela não ter sequer tentado comunicar com ele, avisá-lo do perigo que o filho corria, que não tivesse lutado por Arnau... Bernat apertou o corpo do filho e pensou na mãe, que era violada pelos soldados enquanto Arnau esperava a morte deitado sobre uns troncos de madeira ascorosos.
Quanto tempo demorariam a dar com o rapaz que ele tinha derrubado? Estaria morto? Tinha fechado a porta do cubículo? As perguntas assaltavam Bernat enquanto percorria o caminho de regresso. Sim, fechara-a. Recordava-se vagamente de o ter feito. Assim que dobrou a primeira esquina do caminho serpenteante que levava ao castelo e este desapareceu momentaneamente da sua vista, Bernat destapou o filho; os olhos de Arnau, apagados, pareciam perdidos. Pesava menos que o pão! Os seus bracinhos e pernas... Revolveu-se-lhe o estômago e fez-se-lhe um nó na garganta. As lágrimas começaram a correr-lhe. Disse a si próprio que não era o momento para chorar. Sabia que os perseguiriam, que lhes lançariam os cães, mas..., de que lhe servia fugir, se o menino não sobreviveria? Bernat afastou-se do caminho e escondeu-se atrás de uns matagais. Ajoelhou-se, deixou o pão no chão e agarrou Arnau com ambas as mãos, para o erguer até ao rosto. A criança permaneceu inerte diante dos seus olhos, com a cabecita caída, pendurada. Arnau!, sussurrou Bernat. Sacudiu-o com suavidade, uma e outra vez. Os olhitos da criança moveram-se, para olhar para ele. Com o rosto cheio de lágrimas, Bernat deu-se conta de que o menino nem sequer tinha forças para chorar. Deitou-o sobre um dos braços, esmigalhou um pedacinho de pão, molhou-o com saliva e aproximou-o da boca da criança. Arnau não reagiu, mas Bernat insistiu até que conseguiu meter-lho na pequena boca. Esperou. Engole, meu filho, suplicou-lhe. Os lábios de Bernat tremeram perante uma quase imperceptível contracção da garganta de Arnau. Esmagou mais pão e repetiu com ansiedade a operação. Arnau tornou a engolir, e fê-lo mais sete vezes. Vamos sair desta, disse-lhe. Prometo-te. Bernat regressou ao caminho. Continuava tudo calmo. Decerto ainda não tinham descoberto o rapaz; caso contrário, teria ouvido algazarra. Por um momento, pensou em Llorenç de Bellera: cruel, ruim, implacável. Que satisfação lhe daria dar caça a um Estany ol!» In Ildefonso Falcones, A Catedral do Mar, 2006, Bertrand Editora, 2009, ISBN 978-972-251-511-5.

Cortesia de BertrandE/JDACT