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«(…) O árabe abriu um grande sorriso, levou a mão ao bolso
das calças e mostrou-me umas moedas.
Suspirei, com algum alívio: não é muito, mas já é alguma coisa. E Santamaria
ter faca..., acrescentou ele. Com a faca e o dinheiro, as nossas possibilidades
de fuga aumentavam. Observei a azáfama no interior da Sé e comentei: que
confusão, cada vez chega mais gente. Um homem dirigia as operações de ajuda,
executadas por um grupo de padres e frades. Ao examinar melhor a sua cara,
descobri que era monsenhor Sampaio, o patriarca de Lisboa. Recordava as suas
homilias, anos atrás. Ir conhecer ele?, perguntou Muhammed. Sim, respondi, mas
ele não me conhece. Ainda por cima, assim vestidos, vai perceber que somos
presos e chama os soldados. Muhammed mostrou-se preocupado: então, melhor nós
ir fugir! Tínhamos de sair dali. Dirigimo-nos à saída principal, e foi nesse
momento que se deu o terceiro abalo, aterrador como os outros, embora mais
curto. A Sé abanou e ouviu-se um clamor, pois muitos pensaram que tinha chegado
a sua hora. De cócoras, encostados a uma parede, Muhammed e eu esperámos que o
tecto nos caísse em cima, o que não aconteceu. Vimos, do lado oposto da igreja,
um desmoronamento, mas foi tudo. Mais uma vez, a antiga Sé romana resistiu.
Porém, as pessoas descontrolavam-se, em pânico. Algumas levantavam-se e
corriam, caíam ao chão, voltavam a levantar-se e tornavam a correr, saindo à
pressa da igreja. Outras, ajoelhadas, erguiam os braços ao alto e berravam: misericórdia,
misericórdia!!!
Muhammed e eu aproveitámos o alarido
para sair por uma porta lateral da igreja. Na rua, nas redondezas, uma enorme
nuvem de poeira quase nos cegou. O árabe espirrou e tossiu, antes de afirmar: pó
ir queimar garganta, ir precisar água... Também eu estava cheio de sede, com a
boca e a língua e a garganta ásperas. Inesperadamente, uma memória veio-me ao
espírito. Há muitos anos, num domingo, viera à missa à Sé, seguindo uma
rapariga formosa. Conversara com ela junto a uma fonte, enquanto outras
mulheres enchiam os cântaros de água e os homens tagarelavam. Há uma fonte aqui
perto, disse. Só preciso de me lembrar para que lado era... Dirigimo-nos à
porta principal da Sé, para me situar, e visualizei o local da fonte. Apontei
nessa direcção, mas o árabe disse-me, preocupado: cão Negro ir andar ali, nós
não ir. Bufei, chateado. Ele tinha razão. Devíamos ir rio, ir fugir, sugeriu. Eu
sei. Mas sem água vai ser difícil.
Então, o árabe olhou para uns prédios em frente, que ainda
estavam de pé, e declarou: casas ter água. Abanei a cabeça: não, não depois do
que aconteceu... Não deve haver uma vasilha que tenha resistido. Temos mesmo de
ir à fonte... Estás com medo, rato? O árabe irritou-se: Muhammed não ter medo! Insultei-o,
a rir: mentiroso. És um rato medroso e foi por isso que fugiste e não me ajudaste!
Só pensavas era no cu do francês! A expressão no rosto dele mudou, passando de
séria a divertida. Deu uma gargalhada: Santamaria ter mania, Santamaria só
falar disso! Coloquei um ar indignado: eu?! Tu é que és assim! Alá fez-te ao
contrário e, em vez de gostares de mulheres, gostas é de franceses bonitinhos! Parei
e rimo-nos de novo, bem-dispostos, e depois ficámos em silêncio, apenas
sorrindo e compreendendo, dentro de nós, a sorte que havíamos tido, pois
estávamos vivos e a dizer piadas. Quando esse efeito passou, o árabe perguntou:
Santamaria ir fugir de Lisboa ou ir ficar? Recordei a petição que enviara a
Sebastião José e que ficara sem
resposta, e depois revelei o meu sentimento: já passaram muitos anos, ninguém
se lembra de mim aqui. Se me apanharem, prendem-me outra vez. E a ti também. Melhor
fugir, afirmou o árabe. Apontou de seguida para as casas que haviam resistido:
ir procurar roupas novas? Sorri: o árabe tinha boas ideias. Dirigimo-nos a uma
das casas e entrámos. Passámos largos minutos a vasculhar, até descobrirmos um
armário com roupas, de homem e de mulher. Brinquei com Muhammed: as de homem
para mim, as de mulher para ti! Bem-disposto, Muhammed pegou num vestido e
colocou-o à sua frente, como se o provasse a ver se lhe servia, e começou a
dançar, divertido, imitando os trejeitos de uma prostituta numa estalagem de
Tortuga. Rimo-nos. Por momentos, senti a nostalgia das nossas viagens de
piratas, e saudades daquelas bailarinas sempre disponíveis a troco de umas
moedas. Muhammed pigarreou, numa voz rouca e desagradável: soy una vieja
putana, se me quieres vien... Dei uma gargalhada: o árabe era um comediante
talentoso, sempre me haviam divertido as suas pantominas. Embalado, virou-se de
costas para mim, desceu as calças e abanou o seu rabo branco à minha frente,
enquanto trauteava: yo soy para ti, vien, vien! Explodi numa sonora gargalhada
e atirei-lhe com os sapatos ao rabo. Mais surpreendido do que irritado, parou a
sua exibição e enfrentou-me: que passar? Gritei-lhe: pára com isso, velho
palerma, temos de mudar de roupa! Fingiu-se ofendido, como uma donzela: Santamaria
muito sério, Santamaria nunca ir folgar...» In Domingos Amaral, Quando Lisboa
Tremeu, Lisboa, 1755, O Dia de Todos os Santos vai mudar a vida de 5 pessoas
para sempre, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2010, ISBN 978-972-461-986-6.
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