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«(…) Silenciadas todas as vozes,
El-Rei fez um sinal ao chanceler Vasco Fernandes Lucena. Este avançou um pouco
e, diante do Rei, pediu permissão para iniciar o seu discurso. Quase distraído,
perscrutando cada movimento, cada olhar, cada nobre, cada procurador, o rei João
fez um sinal com a mão direita para que o chanceler avançasse. Vasco Fernandes
Lucena era um homem sumamente considerado e inteligente, letrado e embaixador,
jurisconsulto tão digno quanto idoso. Magro, os cabelos brancos que lhe
faltavam na parte superior do crânio sobravam-lhe dos lados tocando-lhe os
ombros. Pigarreando, Lucena começou o discurso que tinha combinado com El-Rei e
preparara com todo o cuidado. Costumavam, mui alto mui excelente e mui poderoso
Príncipe e mui virtuoso Rei nosso senhor, receber os reis todos os dons dos
seus súbditos e, como príncipes liberais e benéficos, retribuíam-lhes em
grandes mercês os serviços que recebiam. Sabendo que em vossa aclamação, quando
Vossa Alteza tomou título e nome de rei, os três estados do reino vos não deram
menagem, vos não deram obediências, vos vêm hoje oferecer seus serviços, vos
vêm dar as suas menagens e obedecer em tudo como por direito devem e são
obrigados. Lucena alongou-se então, explicando por mor da compreensão de todos
o que era a menagem, que todos a deveriam jurar e assim mostrar o quão fiel era
cada um ao seu soberano, e prosseguia: o que a seu senhor jura fé e menagem,
sempre deve ter na memória estas seis coisas: saúde do corpo de seu senhor, que
não lhe descobrirá nenhum segredo, nem lhe fará dano nas coisas, porque seu
estado deve ser seguro, que não fará dano em sua justiça, que não fará dano em
sua fazenda, que não fará difícil a seu senhor aquilo que possivelmente pode
fazer. E aquilo que possivelmente pode fazer-lhe não fará impossível. Depois
perorou sobre a obediência que deveriam os súbditos a seu Príncipe e Rei sem
excepção alguma. O chanceler parou por momentos. Engoliu a pouca saliva que tinha
na boca e olhou em volta, tentando perceber o sentir de todos os que o escutavam.
Uns nada entendiam, mas fariam o que os outros fizessem, outros entendiam e
acatavam, outros tentavam entender e acatar, e outros ainda duvidavam de tantas
e tão abundantes palavras. El-Rei, imóvel no trono, segurando o manto, mantinha-se
impenetrável na sua postura erecta, olhando Lucena directamente, os olhos
brilhantes e aguardando o final do discurso. Os nobres, alguns imóveis, outros desconfortáveis,
olhavam para o chão ou para o tecto, ou mexiam nervosamente as mãos. Todos os
que estavam de pé passavam o peso de uma perna à outra, tentando encontrar alívio
nas dores que sentiam por estarem sem assento desde manhã cedo.
Outros esfregavam as mãos
nervosamente. Outros olhavam o chanceler nos olhos, aguardando as suas
palavras. Molhando um pouco os lábios, Vasco Fernandes Lucena prosseguiu, agora
com grandes gestos, grande fervor e muito entusiasmo: quem verdadeiramente
obedece ao seu Rei faz coisa digna de sua honra e de seu glorioso nome. Dai a
vosso Rei vossas obediências, vossos preitos e menagens, jurai-o por vosso
verdadeiro Rei e por senhor destes seus reinos e senhorios porque menagens que
pelos grandes fidalgos e cavaleiros e outras pessoas se hão-de dar a Sua Alteza
pelas fortalezas, vilas e lugares e jurisdições e coisas que tem da coroa, e são
obediências que no tempo presente se dão, não se podem tomar! Deferi Sua Alteza
para o tempo que vier, que é serviço seu e daquele que eternamente vive e reina
na glória por sempre e ámen! Quando Vasco Fernandes Lucena terminou, ouviu-se
um murmúrio de aprovação e o chanceler fez uma profunda vénia na direcção do
trono. O calor na sala tornara-se insuportável. O cheiro de pouca lavagem e o
bafo dos corpos aquecera-a tanto como se ali estivesse acesa uma grande lareira
cheia de boa lenha». In Maria João Câmara, O Pecado e a Honra,
Oficina do Livro, Leya, 2012, ISBN 978-989-555-830-8.
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