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Servos
da terra. Ano de 1320. Quinta de Bernat Estanyol Navarcles. Principado da
Catalunha
«(…) Quando o silêncio tornou a
cair sobre a casa, Bernat olhou para o rasto de poeira que os cavaleiros
deixavam atrás de si, e depois dirigiu o olhar para os bois, que pastavam nas
espigas que tinham pisado repetidamente. Desde esse dia, Bernat passou a tratar
mecanicamente dos animais e dos campos, com os pensamentos fixos no filho. De
noite, vagueava pela casa, recordando aquele sussurro infantil que lhe falava
de vida e de futuro, o ranger da madeira do berço quando Arnau se mexia, o
choro agudo com que reclamava a comida. Tentava cheirar, nas paredes da casa,
em todos os recantos, o aroma de inocência do seu filho. Onde dormiria agora?
Ali estava o berço, aquele berço que fizera com as suas próprias mãos. Quando
conseguia conciliar o sono, era o silêncio que o fazia acordar. Então, Bernat
encolhia-se sobre o colchão e deixava passar as horas, tendo por única
companhia os sons dos animais no piso térreo. Bernat acorria regularmente ao
castelo de Llorenç de Bellera, para cozer o pão que agora Francesca não lhe
trazia, encerrada e à disposição de dona Catarina e do caprichoso apetite do filho
desta. O castelo, como lhe contara o pai quando ambos tinham tido de lá ir, não
fora, inicialmente, mais do que uma torre de vigia no cimo de um pequeno
promontório. Os antecessores de Llorenç de Bellera tinham aproveitado o vazio
de poder que se seguira à morte do conde Ramon Borrel para fortificarem, a
expensas do trabalho dos camponeses e das suas cada vez mais extensas terras.
Em redor da torre de menagem, ergueram-se, sem ordem nem harmonia, o forno, a
forja, umas cavalariças novas e maiores, celeiros, cozinhas e aposentos.
Castelo de Llorenç de Bellera
distava mais de uma légua da casa dos Estany ol. Das primeiras vezes, Bernat
não conseguiu obter notícias do filho. Perguntasse a quem perguntasse, a
resposta era sempre a mesma: a sua mulher e o seu filho estavam nos aposentos
privados de dona Catarina. A única diferença residia em que, ao responder-lhe,
uns riam cinicamente, e outros baixavam os olhos como se não quisessem
enfrentar o pai da criatura. Bernat suportou as desculpas durante um longo mês,
até que, um dia em que saía do forno com dois pães de farinha de fava, deu com
um dos esquálidos aprendizes da forja, a quem já algumas vezes interrogara sobre
o seu filho. Que sabes do meu Arnau?, perguntou-lhe. Não havia ninguém à vista.
O rapaz tentou esquivar-se, como se não tivesse ouvido, mas Bernat agarrou-o
pelo braço. Perguntei-te o que sabes do meu Arnau. A tua mulher e o teu filho…,
começou o rapaz a recitar, com os olhos no chão. Já sei onde estão,
interrompeu-o Bernat. O que te pergunto é se o meu Arnau está bem. O rapaz,
ainda de olhos baixos, remexeu os pés sobre a areia do chão. Bernat sacudiu-o. Ele
está bem? O aprendiz não levantava os olhos, e a atitude de Bernat tornou-se
violenta. Não!, gritou o rapaz. Bernat cedeu, para o encarar.
Os olhos de Bernat
interrogavam-no. Que se passa com o menino? Não posso…Temos ordens para não te
dizer..., a voz do rapaz esmorecia. Que se passa com o meu filho? Que se passa?
Responde-me! Não posso. Não podemos… Isto far-te-ia mudar de opinião?,
perguntou, aproximando um pão do rapaz. Os olhos do aprendiz arregalaram-se.
Sem responder, arrancou o pão das mãos de Bernat e trincou-o como se não
comesse havia vários dias. Bernat arrastou-o para onde ficassem ao abrigo de
olhares. Que se passa com o meu Arnau?, inquiriu com ansiedade. O rapaz
olhou-o, de boca cheia, e fez-lhe sinal para que o seguisse. Avançaram às escondidas,
colados às paredes, até à forja. Fecharam as portas e dirigiram-se para a parte
traseira. O rapaz abriu a portinhola de um cubículo anexo à forja, onde se
guardavam ferramentas e materiais, e entrou, seguido por Bernat. Assim que
entrou, o rapaz sentou-se no chão e atacou o pão. Bernat perscrutou o interior
do aposento. Fazia um calor sufocante. Não viu nada que pudesse fazê-lo
entender por que razão o rapaz o levara ali. No chão só havia ferramentas e
ferros velhos. Bernat interrogou o rapaz com o olhar. Este, que mastigava com
gosto, respondeu apontando-lhe uma das esquinas do aposento, e, com os gestos,
instou-o a dirigir-se lá. Sobre uns troncos de madeira, abandonado e
desnutrido, numa grande cesta de esparto rasgada, encontrava-se o menino, à
espera da morte. A branca camisa de linho estava suja e esfarrapada. Bernat não
conseguiu sufocar o grito que se gerou dentro de si. Foi um grito surdo, um
soluço quase inumano. Agarrou Arnau e apertou-o contra si. A criança respondeu debilmente,
muito debilmente, mas fê-lo». In Ildefonso Falcones, A Catedral do Mar,
2006, Bertrand Editora, 2009, ISBN 978-972-251-511-5.
Cortesia de BertrandE/JDACT