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O Algarismo e o Número
«(…) Na manhã seguinte, o bispo Maurício e o
abade de Arlanza dirigiram-se à catedral. O dia estava luminoso e claro e nem uma
só nuvem ameaçava cobrir o sol. Pouco antes do meio-dia, como Jean de la Tour
tinha indicado, os dois castelhanos apresentaram-se na entrada ocidental. Ali
esperava-os o cónego, acompanhado por um cavalheiro que, pela sua vestimenta,
parecia um indivíduo importante. Senhor bispo, senhor abade, apresento-vos João
Ruão, mestre-de-obras da catedral de Chartres. Mestre João, apresento-vos dom
Maurício, bispo de Burgos, no reino de Castela, e o senhor abade de Arlanza. Os
quatro homens cumprimentaram-se. Senhor cónego, o que é isso de tão
extraordinário que nos espera? Haveis conseguido despertar de tal modo a minha curiosidade,
que esta noite quase não consegui pregar olho.
O mestre João de Ruão explicar-vos-á;
segui-nos, por favor. Entraram os quatro na catedral. Era um pouco antes do
meio-dia e a luz banhava todo o templo penetrando em caudais pelos vitrais
multicores. O arquitecto conduziu-os até um determinado lugar ao meio da nave
central. Estamos no Solstício de Verão, quase ao meio-dia. Dentro de uns
momentos o sol atingirá a sua plenitude zenital aqui, na cidade de Chartres;
esse será o momento em que a luz solar brilhará com a maior intensidade de todo
o ano. E então...?, perguntou o bispo Maurício, cada vez estranhando mais. Observai
aquele vitral, é aquele a que chamamos Santo Apolinário, e agora aquela espiga
dourada incrustada na pedra branca. No meio do lajeado cinzento do cruzeiro sul
destacava-se uma pedra esbranquiçada em que havia uma espiga de metal dourado
embutida. Sim, estou a ver, mas o que significa...
Um momento! Eminência, um momento.
Passou um bocado até que um raio de luz
penetrou por uma abertura do vitral de Santo Apolinário em que tinha sido colocado
um vidro convexo. No momento em que o Sol atingiu o zénite, precisamente ao
meio-dia, o raio penetrou pela abertura do vitral para incidir precisamente
sobre a espiga dourada, que pareceu iluminar-se como se estivesse dotada de luz
própria. E nesse preciso momento, toda a catedral se iluminou com dezenas de
feixes que ressaltaram pelas paredes criando um espaço absolutamente mágico. As
paredes, os pilares, as abóbadas, tudo parecia esfumar-se entre os raios
dourados e o tremular dos feixes de luz.
Santo Deus!, exclamou o bispo Maurício. Já o
haveis visto, Eminência, conseguimos captar os raios de sol e que pelo menos
durante uns instantes, sejam nossos. Haveis conseguido um efeito maravilhoso,
mas... como? É um problema de óptica, interveio João Ruão; bem, de óptica e de
teologia. Deus é a luz, a luz do universo que fecunda a terra e que nos livra
da matéria escura. A pedra significa o mundo feminino, que ao receber a 1uz dá
vida. Se haveis reparado, a Virgem está esculpida na entrada em pedra negra. Mas
isso não é tudo, segui-me.
João levou-os até à nave central, quase aos
pés do templo.
Construímos esta catedral à imagem do mundo.
Este templo é o símbolo de todo o universo, estão aqui reunidas a luz e e a escuridão,
a razão e a loucura. Mas, sem dúvida, é o templo do triunfo da luz sobre as trevas.
Os vitrais dão forma à divina luz solar. A luz é o elemento fecundador
masculino e a pedra o receptor feminino, ambos nos falam e nos recordam quem somos
e de onde vimos.
Pareceu ao bispo Maurício
que algumas das coisas que o arquitecto de Chartres dizia raiavam a heresia, ou
pelo menos se assemelhavam a crenças pagãs condenadas pela Igreja. Deus fez a
luz, disse o bispo de Burgos». In José Luís Corral, O Número de Deus, 2004,
O Segredo das Catedrais Góticas, Planeta Editora, Lisboa, 2006, ISBN
972-731-185-7.
Cortesia de Planeta Editora/JDACT