quarta-feira, 18 de março de 2020

O Enigma de Compostela. AJ Barros. «O detective interrompeu o comandante: o senhor poderia explicar esse seu comentário sobre o papel e a letra? Papel de bloco. Sugere que vamos receber outras mensagens…»

Cortesia de wikipedia e jdact

A Via Láctea
«(…) O oficial começou a olhar para o peregrino com outros olhos e Maurício aumentou a tensão que já tomava conta do ambiente, dirigindo-se ao detective: haverá mais mortes, e o senhor pode ser uma das vítimas, se a sua investigação puser em risco a missão do assassino. O abade começou a rezar em voz alta. E porque a sua vida não corre risco? Era mais fácil matar-me do que o espanhol e o padre. Estive sozinho e isolado em várias situações. Também não vejo interesse em matarem um brasileiro aqui, quando lá no Brasil seria simples e não despertaria suspeita. Mas agora, se me permitem, gostaria de seguir a sugestão do comandante e continuar a minha peregrinação. Com um gesto de reverência para as autoridades, dirigiu-se para a porta, em passos cadenciados, como se nada houvesse acontecido. Ia pensando nesse crime sem explicação em que o moribundo enviara uma mensagem. Veio-lhe à lembrança a estranha figura daquele peregrino forte, com um cajado maior que o normal, andando apressado. Se fosse o assassino, estava dirigindo-se a Roncesvalles. Mas para quê? Matar um padre em condições tão arriscadas? Não parecia lógico.
Não resistiu à tentação de olhar para trás, quando chegou perto da porta. O que viu o deixou intrigado. Os policiais e o comandante estavam entretidos com o inquérito, mas o abade lançava sobre ele um olhar de súplica, com a testa franzida e a mão direita no bolso da batina. Fitaram-se por alguns minutos. O detective parou de examinar papéis e o comandante estava por perguntar porque ele não ia embora logo, mas percebeu a cena. Em vez de sair, voltou-se e caminhou lentamente até ao padre. O próprio escrivão não se atreveu a mexer nos papéis ou nos objectos da mesa do inquérito para não quebrar o silêncio perturbador. Maurício aproximou-se do superior da irmandade e apenas estendeu a mão direita. O comandante teve ímpetos de segurar o religioso para que ele não tirasse do bolso uma arma que pudesse ter às escondidas, mas o abade estava visivelmente tenso, aturdido e suava. Contemplou por pouco tempo a mão estendida por aquele estrangeiro, em quem passara a confiar mais do que nas autoridades do seu país, e lentamente tirou do bolso uma folha de papel dobrada.
Maurício pegou-a e entregou ao comandante, sem ler, porque era um documento que deveria ser visto antes pelas autoridades policiais, e estas é que decidiriam se ele poderia ou não conhecer o conteúdo. O comandante já estava prestes a explodir, e agora com razão, mas se conteve diante da atitude correcta de Maurício, e tomou o papel às pressas da sua mão. Olhou feio para o padre e dirigiu o seu olhar furibundo para Maurício, que apenas o encarou respeitosamente. O detective quebrou as tensões fortes do momento com apenas uma palavra: comandante!, e estendeu a mão. O comandante não teve pressa e ficou olhando para o papel, como se fosse noutra língua. Depois de alguns minutos, sem fazer comentários, entregou-o ao detective, que o leu com o rosto sombrio e passou-o a Maurício, perguntando em seguida: o senhor entende de charadas? Em vez de responder, Maurício começou a estudar o papel em voz alta. Folha de bloco, tinta vermelha, letra de calígrafo. Olhou para o abade: isso, suponho, estava na cama do padre Augusto. O senhor acha que foi deixado pelo criminoso, não é? O abade benzeu-se com tanta força, que quase bateu as mãos no nariz. Estava vermelho e tremia. O comandante poderia ter ficado quieto, mas tinha o vício da autoridade: isso parece óbvio, o senhor não acha? E agora? O que o senhor me diz de ele não ter vindo aqui para matar padres, se deixou uma mensagem no corpo do padre, que assassinou com tanta crueldade?
O detective interrompeu o comandante: o senhor poderia explicar esse seu comentário sobre o papel e a letra? Papel de bloco. Sugere que vamos receber outras mensagens do mesmo tipo. Tinta vermelha. Não gosto disso. Normalmente escreve-se em azul. O vermelho sugere sangue. Ficou em silêncio como se pensando no que poderia acontecer, mas o comandante interrompeu seus presságios: e o senhor acha que ele é um calígrafo? Se for isso, é só descobrirmos os calígrafos do país. Maurício levantou a cabeça e deu uma resposta perturbadora: é muito difícil identificar o autor de uma letra artificial. O senhor sabe disso. A tecnografia compara letras para verificar se elas são do mesmo punho que escreveu o modelo levado para exame. Quando a escrita é comum, o trabalho é simples. Não sei se me fiz entender». In AJ Barros, O Enigma de Compostela, Luz da Serra, Geração Editorial, 2009, ISBN 978-856-150-127-3.

Cortesia de GEditorial/JDACT