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O
Factor Bellucci
«A
pergunta era bem mais complicada de responder, se lhe déssemos uma conotação séria,
mas numa almoçarada entre velhos amigos, só homens, que acontecia de tempos a
tempos, bastava-me um pouco de bazófia machista. Porque é que um homem trai a
sua mulher? Pela mesma razão que sobe à montanha: porque ela (a outra) está lá.
O meu nome é Zé, tão banal quanto a minha vida. Funcionário bancário, acomodado
a um emprego razoavelmente bem pago, mas sem nada fazer para conseguir a promoção
que já poderia ter vindo há muito, aconteceu-me passar pela vergonha de só ver
a minha dignidade profissional ser defendida pelo meu filho, de nove anos. Um
dia, o Quico esmurrou um colega por minha causa. O outro disse-lhe que o seu
pai era melhor do que o dele e, bem, basicamente, que eu não prestava para
nada. É daquelas situações que dão que pensar. Por razões óbvias, não podia
enaltecer a atitude do meu filho. Vontade não me faltava, mas como também não
estava disposto a admitir que, de facto, eu não era grande coisa, fiquei-me
pelo sermão da ordem e expliquei-lhe que os problemas não se resolvem ao murro.
Mas confesso que me senti deprimido. Ali estou eu, meio deitado no sofá, ao serão,
agarrado ao comando da televisão, obeso e relaxado, ao lado da minha mulher
obesa e relaxada, estão a reconhecer a cena?, sem qualquer interesse por nada,
sem força anímica para coisa alguma, deixando-me hipnotizar pela televisão. Não
me orgulho de o dizer, mas é necessário reconhecer, o meu lugar no sofá tinha a
forma do meu corpo. E é preciso vir o meu filho e pumba, dar um murro no colega
para me abanar a consciência.
Verdade seja dita, o murro do meu
filho não foi suficientemente poderoso para mudar a minha vida. Funcionou assim
como uma chamada de atenção, mas mudar não. Se mudássemos de cada vez que algo
nos abala, não fazíamos mais nada na vida, pois não? Exacto. E eu já me
habituara tanto a não fazer nada de especial que mais vergonha, menos vergonha
não ia mudar coisa nenhuma. Para mim, a felicidade era aquilo que eu tinha, uma
existência fácil, resignada, um emprego seguro, uma mulher que me amava, um
filho que me defendia. Era pouco ambicioso, bem sei, mas talvez a felicidade não
passasse disto, ou talvez eu não acreditasse na felicidade dos livros e dos
filmes, que nos fazem pensar que podemos concretizar todos os nossos desejos, desde
que tenhamos força de vontade e coragem para nunca desistirmos. Os livros e os
filmes ajudam-nos a ter uma perspectiva mais positiva do mundo que nos rodeia,
provocam a nossa imaginação, desafiam-nos a sair dos casulos em que temos tendência
para nos enfiarmos por nos parecerem mais seguros, como se os nossos problemas
desaparecessem só por nos escondermos atrás de uma rotina tranquila e
inofensiva. Fosse como fosse, eu não pegava num livro há anos e não ia muito ao
cinema. E, nessa época, quando decidi ir, deu asneira.
Como muitas vezes acontece na
nossa vida, a minha deu uma enorme cambalhota quando eu menos esperava. A esta
improvável reviravolta chamei, ainda que em segredo, o Factor Bellucci.
Bellucci, aliás Cátia-super-parecida-com-a-Mónica-Bellucci, era a deusa do
banco, a mulher mais bonita entre nós, mortais bancários. Cátia caminhava acima
de nós, noutro patamar, com umas pernas compridas que não podiam ser reais. Eu
costumava vê-la passar nos corredores do banco e não me lembro de alguma ocasião
em que, tendo-me cruzado com ela, não tivesse ficado a olhar. Era simplesmente
impossível seguir em frente sem dar uma espreitadela discreta por cima do
ombro. Discreta achava eu, claro, pois surpreendi muitos dos meus colegas a
fazerem a mesma figura de parvos. Em todo o caso, quando nos cruzávamos trocávamos
um bom-dia ou boa-tarde sem história e lá íamos à nossa vida. Não havia
conversa, eu não tinha conversa para ela, imaginava-me a arriscar-me a meter-me
com ela e tinha a certeza de que iria arrepender-me para sempre. Ela era
demasiado bonita e eu demasiado patético, ou, nessa época de fraca auto-estima,
achava que sim.
Como é que Cátia se tornou minha
amante é uma história não muito comprida que saberão mais lá para a frente. O
que interessa agora é que foi muito mais fácil do que eu estava à espera, embora
eu nem sequer estivesse à espera, e aconteceu na mesma altura em que fui promovido
a director, que também não estava à espera. Algumas almas mais cínicas estarão
a pensar ah, pois... mas
enganam-se. O primeiro contacto transcendente com esta mulher incrivelmente
bonita foi antes da
minha promoção. Não nego que o sexo veio depois, mas, que diabo, o trabalho de
sapa já estava feito. Moral da história: não há mulheres impossíveis, eu é que
não sabia. E não sejamos hipócritas, o primeiro homem que nunca pensou em
enganar a sua mulher que atire a primeira pedra. E a primeira mulher que nunca
pensou em desembaraçar-se do seu marido que... okay, deve haver algumas, não atirem pedras». In Tiago
Rebelo, Eu e as Mulheres da Minha Vida, 2003, Edições ASA, 2016, ISBN
978-989-233-501-8.
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