quarta-feira, 11 de março de 2020

João II. Crónica Esquecida. Seomara Veiga Ferreira. «Deve haver por lá o resto da obra. Isto pertence a um monte de livros que vieram da França. Assim fiz. O tio Gil achava-se acompanhado por outro irmão…»

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A morte de Lancelot
«(…) Sentia o livro formar-se dentro de mim como um filho e passava os dias possuído por uma profunda e conturbada alegria, porque as dúvidas também me assaltavam. Estava no limbo, espécie de zona entre o sonho e a realidade, e movia-se dentro de mim como um feto no ventre de uma mulher. Era uma experiência nova. Obcecado pelo trabalho, falhei muitas vezes a mestre João Paz. Meu amigo alquimista copiou o que conseguiu. Que sonho é esse, rapaz? Estás absorto, pareces um fantasma, ou um velho meditabundo. Olhei-o. Se eu vos dissesse que tenho medo de não ter tempo, acreditáveis?, Ele sorriu. Acreditava. Sei o que isso é. Comigo, até eu aprender, foi a mesma coisa. Aquela necessidade de recuar dentro da nossa própria alma. É isso. Mas como foi possível aprender? Como? Terás tempo, o teu tempo, e aprenderás. Essa é a única coisa que te não posso ensinar. Agora vai ter com o teu tio e pede-lhe que alguém te ajude. Deve haver por lá o resto da obra. Isto pertence a um monte de livros que vieram da França. Assim fiz. O tio Gil achava-se acompanhado por outro irmão, talvez um pouco mais velho, de forte compleição, louro como eu, mas de olhos castanhos. Olha, filho, aqui tens o irmão Jerónimo. Veio de longe. Da Palestina. Vai ficar connosco por uns tempos. O irmão Jerónimo que parecia ocupar toda a cela, sorriu e apontou o grosso livro que eu embrulhara em pano e apertava sob o braço: precisas certamente de qualquer coisa, filho. Foi sempre a frase com que me recebeu, até há pouco tempo, quando me despedi dele. Com o apoio do tio Gil, mostrei o livro. Eu ajudo-te. Tens aqui um futuro sábio?, perguntou o meu tio. Ainda és muito novo, mas é de novo que se começa a aprender a arte e o caminho para a sabedoria. Vem ter comigo um dia destes, à biblioteca. Também estou a escrever. Uma encomenda. Para a Itália, para a casa de nossos irmãos no Norte de Itália. Continuei o trabalho durante todo esse ano até meados de Março de 1479. Resolvera festejar o meu aniversário na cela do tio Gil onde estariam também meu pai e minha mãe, além de mestre João Paz, homem culto e muito inteligente, de uma coruscante sagacidade. Eu iria ler-lhe os primeiros capítulos da obra iniciada. Fui combinar tudo para fazer surpresa a meu pai. Três dias depois, mestre João Paz chamou-me. Íamos partir para sul, ter com a mãe da Rainha. Um dos filhos não estava bem e o físico que por lá vivia não atinava com a febre. Fui contrariado, mas o trabalho exigia. Quando chegámos, deparou-se-nos uma azáfama inusitada. Uma das açafatas informou-nos de que a Infanta partia para Espanha. Que tomássemos conta do enfermo, o jovem Manuel.
Tanto a rainha Isabel de Castela como o príncipe João, pois o rei Afonso limitava-se a aceder, depois de perdidas as verdadeiras ilusões, desejavam concertar a paz. Dona. Beatriz, que era tia da rainha por parte de sua mãe, depois do infante João ter estado em secreto colóquio com a sogra na sua quinta de Belas, onde a viúva do infante Fernando passava longas temporadas, resolvera ajudar e, como se se tratasse de uma visita de cortesia (como instava, do outro lado, aliás, dona Isabel) encontrar-se com a esperta mulher de Fernando de Aragão. Seria em Alcântara, na zona fronteiriça. Para o efeito, dona Beatriz foi até ao seu paço de Beja preparar-se e organizar a cansativa viagem. Existia uma peça essencial neste jogo complicado de forças: a infeliz Beltraneja, a dona Joana que o próprio pai desacreditara, e que ingenuamente ainda assinava yo la Reyna, e se intitulava rainha de Castela, de Leão, de Portugal como herdeira de Henrique IV e esposa de Afonso de Portugal... La Chica, como se lhe referia Isabel de Castela, com o sorriso depreciativo dos que podem decidir, porque têm meios e força, o destino dos outros sem preconceitos nem hesitações. E Isabel estava decidida a crucificá-la. Em Beja, para onde seguimos no dorso de mulas, depois de várias paragens por hospedarias miseráveis onde dormíamos sobre enxergas coalhadas de percevejos, a ponto de colocar água à volta dos paus da cama que serviam de pés, pois as baratas e os percevejos percorriam o sobrado aos milhares, e sempre com um de nós de guarda por causa
das rapinas, fomos ver o jovem Manuel. O outro físico e mestre João lá se entenderam porque nisto de profissão não se deve arranjar problemas, mas colaborar...» In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.
                                                                                 
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