Cortesia
de wikipedia e jdact
Vaticano.
19 de Abril de 2005
«(…) A curiosidade jornalística
sobrepôs-se ao temor. Calçou-se e pegou no casaco. Já venho. Queres que vá
contigo?, voluntariou-se o deus italiano. Sarah fitou o jovem clérigo e
analisou-o durante uns instantes. Não. Está tudo bem. Desceram no elevador até
ao piso da recepção. Já era noite. Olhou em redor e não viu ninguém. Nem na
recepção, que costumava ter sempre alguém atrás do balcão pronto para atender
ao hóspede mais incauto ou curioso, estava alguém. Parecia um hotel despido de
vida. Como se o mundo tivesse parado durante alguns instantes e fosse
desprovido de gente. Sarah e o clérigo não trocaram uma palavra. Ela preferia
assim e era um favor que fazia à sua escolta a quem o silêncio também agradava.
Cumpria as ordens escrupulosamente e não desejava ser interrogado sobre coisas
que não devia, ou não podia, mencionar. Saíram para o exterior. Estava frio,
mas não desagradável. Tolerava-se. Pensava em Rafael. Seria ele quem a
convocara? Não podia ser mais ninguém. Por essa razão estava tão despreocupada.
Não era suficientemente importante para despertar o interesse de jovens clérigos
mudos. O carro estava em frente ao hotel, ao fundo das escadas. Um Mercedes de
vidros fumados.
O jovem padre abriu a porta do veículo
e Sarah olhou para o interior. O queixo caiu-lhe. Dentro, confortavelmente
sentado, a saborear um charuto, um homem de vestes escarlates, cruz de ouro a
pender no peito, segurava no colo a calota cardinalícia. Boa noite, Sarah
Monteiro, cumprimentou.
As conversas entre amigos são
contínuas. Ainda que fiquem anos apartados retomam-nas sempre no ponto em que
ficaram, empenhando a experiência adquirida no entretanto. As grandes amizades
não carecem de comunicação constante e ininterrupta, podem mesmo não dizer nada
um ao outro entre encontros que quando se tornam a ver a sensação é a de que se
tinham visto no dia anterior. O dia anterior em certas amizades podia ter sido
há três anos e meio. Hans Schmidt e Tarcísio fruíam desse género de amizade. Um
abraço apertado seguiu-se ao cumprimento entre as mãos direitas. Depois dois
beijos. Tarcísio deixou os olhos encherem-se de lágrimas, mas nenhuma se
atreveu a descer pelo rosto. Schmidt não chegou a tanto, mas isso não queria
dizer que não tivesse saudades do amigo, simplesmente mostrava menos. Daí que
sempre tenha sido chamado de Austrian
Eis. Como estás, meu querido?, perguntou Tarcísio com um sorriso. Como
Deus quer, respondeu o austríaco fitando o piemontês. Senta-te, senta-te, pediu
Tarcísio, apontando para um sofá de couro castanho com décadas. Deves estar
cansado. Fizeste boa viagem? Muito agradável, disse Schmidt, acatando a oferta
de Tarcísio e deixando o corpo repousar no sofá. Cruzou a perna. Sem atrasos,
sem percalços.
Tarcísio
sentou-se ao seu lado. Estavam no seu gabinete, o que para Schmidt era uma
novidade, nunca ali havia entrado. Muito espaçoso, uma grande secretária de
carvalho junto a uma das amplas janelas que estavam fechadas a separá-los da
noite romana. O silêncio instalou-se constrangedor. Os cartuchos da conversa
circunstancial estavam quase esgotados. Jantaste? Queres comer alguma coisa?,
ofereceu Tarcísio. Estou bem, Tarcísio, obrigado. Schmidt sempre fora muito frívolo.
Raramente sentia fome, por vezes, nos tempos em que estava colocado em Roma,
parecia-lhe há séculos, esquecia-se de comer. Chegou a desmaiar de fraqueza por
causa disso. O austríaco era obstinado e dedicava-se com afinco à tarefa ou
tarefas que lhe tivessem sido imputadas, fosse nos estudos ou, posteriormente,
nas funções pastorais. Durante alguns anos esteve arredado dessas funções que
lhe davam tanto prazer, auxiliando Tarcísio com deveres mais administrativos e
episcopais que entendia serem necessários, mas não o preenchiam. Fosse como
fosse, gostasse ou não, sempre as executou com muita proficiência. Tarcísio
tinha um enorme apreço pelo homem e pelo clérigo e, um ainda maior, pelo amigo.
Vamos falar do teu problema?, inquiriu Schmidt. A sua abordagem aos problemas
era simples e directa, não os evitava, nem lhes virava as costas, se existiam
tinham de ser solucionados imediatamente para não avassalarem sobre nós mais
tarde. Deus protegia os audazes. Tarcísio olhou para o chão à procura das
palavras correctas que teimavam em fugir-lhe como água pelos dedos. Decidiu ser
directo como o amigo. Schmidt não o permitiria de outra maneira». In
Luís Miguel Rocha, A Mentira Sagrada, Porto Editora, 2011, ISBN
978-972-004-325-2.
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