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O
Sapateiro Santo
«(…)
Entravam. Sentavam-se a uma mesa corrida, diante de uma tijela de caldo e um
naco de pão. Savachão hesitava. A seu lado, à sua frente, sôfrega sorvia a
pobreza a sopa nas gorjas sequiosas os lábios a escorrerem. As freiras
apressavam-nos: vamos, vamos. Dar o lugar. Levantavam-se limpando as beiças às
mangas dos gibões, levando à boca com grandes dentadas a polpa do pão. Então
não comes?, perguntava a irmã a Savachão. Não sei comer depressa. Andar, andar.
Há outros à espera. Telo tocou-lhe de leve no braço a urgi-lo. Beberam o caldo,
ergueram-se e saíram. Savachão tinha os olhos húmidos. O pajem olhou-o, mas
evitou dizer fosse o que fosse. Vinha lá um cortejo em direcção à igreja. Em
cavalos baios de gualdrapas quarteadas de vermelho e branco, os trombeteiros e
atabaleiros com os instrumentos calados... Por de mais conhecia ele aquele protocolo,
as precedências. Podia vê-los de olhos fechados... os três reis-de-armas, os
arautos, os passavantes... Abria os olhos. Já desfilava a representação da
câmara, agora os desembargadores e..., seus pecados!..., os magros fidalgos que
restavam na corte. A negrura da ausência povoa o séquito. O que meus olhos da
culpa estão vendo é a multidão dos fantasmas dos que se finaram lá em baixo...
Sacudo-os
com a mão... Lá vem o alferes-mor, a bandeira enrolada na haste, como
condestável o duque de Bragança com o estoque... Meu tio Henrique! De vermelho.
Montado em mula preta de gualdrapa escarlate, doirados os copos da brida e os arreios
da cabeçada. Às rédeas, os condes da Sortelha e da Castanheira. Diante deles,
empunhando a vara de mordomo-mor, o conde de Portalegre... Escolheu esta
capela, conheço bem porquê: aqui foi ele sagrado arcebispo de Braga. Agora vai
ser rei... Já sobe a escadaria. No patamar espera-o toda a clerezia da capela
real e do cabido. Lá está o arcebispo Teotónio e os bispos Osório, André, Jorge
e aquele ali, diz-me, Telo... É Sebastião Fonseca, bispo de Targa... Olha o meu
capelão-mor João Castro... Debaixo do pálio, Jorge Almeida, arcebispo de
Lisboa... Já entram no templo.
Sei
bem o que se vai passar lá dentro: meu tio no estrado, sob o dossel..., a
jurar, de joelhos, sobre o missal e a cruz, bem governar, sustentar a justiça,
guardar privilégios e liberdades..., o camareiro-mor a entregar-lhe o ceptro...,
a cerimónia do beija-mão..., e não tardará, tão poucos são os senhores para lhe
beijarem a mão, que o rei-de-armas... Ouvide! Ouvide! Ouvide!, soa dentro a
grita do rei-de-armas. ... o alferes-mor já desfralda a bandeira e solta o
brado... Real! Real! Real! Pelo Sereníssimo Príncipe Dom Henrique, Rei de
Portugal!
...
Ah! Que tibieza! Como o povo corresponde sem alegria!... Vem, Telo. Já me custa
morrer tanta vez. E afastam-se dali, pelas traseiras dos Estaus, soavam na
praça as trombetas e os atabales. Vieram de detrás de São Domingos e no largo
da feira das bestas, sentaram-se nos degraus da ermida da Senhora da Escada.
Saíam da igreja do mosteiro damas embiocadas, seguidas das criadas e escravas
negras, e juntavam-se a falar. De luto, senhora? Pois já tendes a certeza? Não,
mas..., é o luto da alma. Eu recuso-me a acreditar. Choro dia e noite..., mas
não me visto de negro enquanto não souber. Dá mau sestro. Esta angústia em que
vivemos... Conseguistes saber alguma coisa dos poucos que chegaram na armada de
dom Diogo? Não queirais saber! Insisti, insisti... Caras de pau, senho sombrio,
carrancudos, a boca cerrada..., um túmulo..., um túmulo como todo o reino...
Mas podiam, ao menos, desabafar, dizer o que sabem... Dizerem que o rei morreu
é dizerem que o deixaram morrer... Ah! Meu Deus! Tenho lá o meu marido, os meus
filhos..., agonia de alma! Sabeis que vos digo? Eu não sou pessoa para ficar
nesta incerteza. Que ides fazer? Falaram-me de uma mulher de virtude que vive
no Borratém... Também a mim. Mas essa foi presa por roubar. Está presa no
Aljube. Pois irei ao Aljube. Sentou-se junto deles um mendigo que rondara as
damas de mão estendida: pobres comadres!, rosnou coçando os sovacos. Tão
desvairadas e andejas, acabam por não fazer diferença entre luto e romaria». In
Fernando Campos, A Ponte dos Suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.
Cortesia
de Difel/JDACT