jdact
O
Sapateiro Santo
«(…)
O arcebispo fez com as mãos o gesto de assentimento e o peregrino, afirmando o
propósito de os não maçar muito mais tempo, continuou a contar...
Um
dia haviam chegado a Évora com os sapatos rotos do caminho. Savachão lembrou-se
de Simão Gomes. O sapateiro santo?, perguntou Telo. Assim lhe chama o povo, por
via das suas muitas cantigas proféticas como as do Bandarra. Queres que eu te
encomende uns chapins novos? Será bom que ele nos tire a medida dos pés. Numa
ruela perto da sé, era aí a oficina de Simão. Lá estava ele, sentado num mocho,
à porta, cosendo gáspeas com a sovela, cantando:
Vejo
montes humilhados
vejo
vales levantados
vejo
gemidos e prantos
vejo...
Que
desejais? Uns chapins, disse Telo. Hum! Mendigo não costuma comprar chapins.
Sola dura, calejada, nos pés. Esses que trazes, todos rotos, roubaste-os a
algum defunto? Não desconverses. Alto lá! Temos fidalgo! Quanto queres por
eles? Mediu-o desconfiado da cabeça aos pés: tens dinheiro? De esmolas. Não é
muito, mas... Quando eu for pajem do cardeal... Ah, ah, ah! Vais ser pajem do
cardeal? E eu deão da sé. Tu pagas-me e eu aspirjo-te com o hissope in nomine
Patris e Filho. Olhou para Savachão, que se conservara calado um pouco atrás de
Telo: e tu? Também queres chapins? Uns sapatos? Umas botas? Um para o pé
direito, outro para a muleta... ah, ah, ah! É mais em conta... e pagas-me
quando fores rei: o lugar está vago... Súbito tornou-se sério, os olhos turvos
de água: desculpa. Gracejo, mas tenho o luto aqui..., e levava a sovela ao
peito. ... Quando ele me chamava ao paço... enquanto eu, de joelhos, lhe ia
tirando o molde do pé... Como ele gostava de falar comigo!... Coisas do
futuro... E eu dava-lhe trela àquele desejo tenaz, àquela imaginação sem rédea...
Também tenho a minha parte de culpa no que aconteceu... Naquela idade, com
aquelas manias, o de que ele precisava era de levar nas trombas. Mas não houve
ninguém..., até que os Mouros... Fazes os chapins?, cortou Telo. Pareceis boas
pessoas. Vá, mostra-me o teu pé. Telo aprestou-se. Simão Gomes tirou de uma
prateleira uns chapins já feitos e experimentou-lhos: mesmo a calhar. Agora o
teu amigo. Savachão aproximou-se e ele examinou-lhe o pé esquerdo, que, por mor
da muleta, tinha no ar: ah! Peito arqueado, alto... O meu senhor rei também
tinha um pé assim..., e olhou-o acima: não tens, por acaso, uma verruga no dedo
mindinho do pé direito, pois não? Não. Era tão grande, dizia o sapateiro,
recordando, enquanto da prateleira pegava outros chapins: ... que parecia um
sexto dedo, nunca o esquecerei..., e calava-se, continuando a afagar o pé de
Savachão e olhando-o pensativo nos olhos... Aqui tens uns chapins mesmo a
matar. Quanto é? perguntou Telo. Pagar-me-eis..., e esganava-se-lhe o
sentimento na garganta, ... quando eu for deão da sé...
Soluçavam
dobrando tangendo os bronzes plangentes por toda a cidade..., corriam pessoas
os olhos chorosos de todas as ruas... Que luto será este? Savachão desembarcava
na Ribeira com o companheiro, vindos do Sul. Telo, no cais, inquiria um velho
que passava. O barqueiro estendia a Savachão a muleta... Já assentava o pé no
chão, embora continuasse a apoiar-se e manquejar. Mais como disfarce, meu pai
que eu não conheci, minha mãe que me abandonaste..., verdade que, por ter os membros
direitos mais avantajados, sempre coxeara, mas sempre o soubera dissimular. Até
das duas bolsas a esquerda era a mirrada. Pecara como fruto chocho, por apartar
para esse lado. "Para que lado aparta Vossa Alteza?, perguntava-lhe o
alfaiate ao medir-lhe as calças na virilha, para poder talhar a barguilha à
feição. Não sabia bem definir o que sentia, vergonha, mal-estar, quando as mãos
dele lhe mexiam naquelas partes...» In Fernando Campos, A Ponte dos Suspiros,
1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.
Cortesia
de Difel/JDACT