«No debate da écloga “Basto”, salientam-se dois temas característicos da poesia de Sá de Miranda: o do contraste entre a Natureza e a Sociedade, e o do Poder político». António José Saraiva, História da Cultura em Portugal, Lisboa, 1955.
«A “Écloga Basto” é uma síntese moralizadora do conceito que o Poeta fazia do mundo, da vida e do homem, e é a mais nacional das suas criações». Marques Braga, Sá de Miranda, in História da Literatura Portuguesa Ilustrada, Lisboa, 1930.
"Basto" tem uma importância excepcional, não só pela sua densidade e extensão […], mas principalmente pelos seus temas, tão relacionados com os das “Cartas ou Sátiras”. José Pina Martins, Cultura Portuguesa' Lisboa, 1974.
“Basto”
A Nuno Álvares Pereira
[…]
Ambos nos temos à banda
de Gil, que aqui vos envio
por onde a menos gente anda;
eu porém não aporfio,
que a cada um seu gosto manda.
Não falecem contendores,
seja a razão a que vença;
estem à parte os favores;
ouvi os vossos pastores:
outrem parta a deferença.
“Basto”, representador, de quem se toma o nome.
Pastores: Bieito. Gil
Bieito:
Que é isto, Gil, que andas triste,
despois que entrou este Abril?
Não sei que demo te viste,
que tu não pareces Gil.
Amigo, onde te sumiste?
UIo aquele grande amigo,
de limpos bofes lavados,
daquele bom tempo antigo
que assi falava contigo,
tu comigo os teus cuidados?
Assi tito só te vieste,
forte burrão foi o teu!
Tanto d'amigo esqueceste
como aqui tinhas de teu!
- nem a mim não mo disseste.
Ora di-me, se te apraz:
despois de tanto sol posto
tal inchaço inda em ti jaz?
Arrenega o mal, que traz
sempre à memória mau rosto.
Tu olhas-me de través:
parece que a mal o tomas;
mas se Gil tu inda este és,
não hei medo que me comas,
por anojado que estês.
Posto que, por mau acerto,
fezeste forte mudança,
já tanto to não referto;
mas de um amigo tam certo
deveras ter mais lembrança.
Muitas vezes esmagino,
Gil amigo, em ti cuidando,
na tua brandura e ensino,
que falarias estando
duas horas c'um menino.
Ora olha bem o que fais;
tinhas tantos de bons modos
co's iguais e não iguais,
quando estavas bem co's mais:
dás que em ti falar a todos!
Que se fez do teu cantar?
Ninguém não cantava assi;
mas para que é perguntar
senão que se fez de ti?
Onde te iremos buscar?
Não há ora um tanto espaço
quando Janebra casou
com Gregório, teu colaço,
quem teve rosto aos do paço?
Quem tangeu e quem cantou?
Morreu-te gado meúdo?
Assi vai de grau em grau;
não se pode salvar tudo;
vem bom tempo após o mau:
sofre, que sofre o sesudo.
Arrenega dos assanhos:
já os devias ter provados;
não são os males tamanhos:
se este Março não foi de anhos,
outros virão melhorados.
Gil:
Seja, amigo meu Bieito,
a tal vinda em hora boa;
eu digo, amigo escolheito,
como quem o leite côa,
qu'há-d'ir por dentr' ao seu peito.
Mas, respondendo ao que dizes,
vês-me cajado e fardel,
não caçador de perdizes;
bem sei que há muitos juízes,
e muito poucos sem fel.
Mas em fim, que pesa ou val,
- a nós Parece que muito'
diz Turíbio, diz Pascoal-,
palavras vãs e sem fruito,
e às vezes inda sem sal?
Quando a bíbera no ar morde,
por mais peçonha que traga,
não temas que eu inche e engorde,
não hajas medo que acorde
bradando pola triaga.
Vês tu cousa que estê queda?
Ora é noite, ora amanhece,
ora corre üa moeda,
ora outra: tudo envelhece,
tudo tem no cabo a queda.
E nós a ter mão na conta
errada! Sejamos velhos,
quer meninos - que mais monta?
O presente todo afronta,
a vida vai-se em conselhos.
Do leite e sangue empolado,
o bezerrinho viçoso
vai brincando polo prado;
despois eis que, priguiçoso,
ora ò carro, ora ò arado.
Co's dias e co trabalho
o saltar d'antes lhe esquece;
não é já o que era almalho:
venda-se para o talho,
qu'este boi velho enfraquece.
[...]
In Antologia Literária, Maria Tarracha Ferreira, Época Clássica, Século XVI, Editora Ulisseia, 1988.
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