Em parte alguma foi a Inquisição (maldita) mais rigorosa do que em Goa. In
Bouillet.
«A inquisição goana era pelos seus rigores reputada a pior das
inquisições existentes no orbe católico das cinco partes do mundo, no sentir unânime
dos escritores nacionais e estrangeiros. Ora se é esta uma verdade aceite,
ouçamos as palavras autorizadas do pai dos historiadores portugueses deste
século, Alexandre Herculano, discorrendo no seu Fragmento sobre a Inquisição
de Lisboa, publicado há pouco em Portugal e que mutatis mutandis é mais que comum à nossa Inquisição (maldita); e
por ele avaliemos a que abusos e excessos se sujeitariam os boçais gentios de
Goa, quando convertidos à fé católica fossem acusados de continuar às escondidas
no seu culto dos antigos ritos, assimilando-se nisto aos cristãos-novos de que
fala o mesmo Herculano.
Pode imaginar-se,
começa o abalizado historiógrafo:
- qual seria o terror dos indivíduos da raça proscrita, quando ouviam da boca dum familiar do Santo Ofício (maldito) a ordem para o acompanharem aos cárceres do tribunal. Entrando ali, aqueles cujos ânimos eram mais fracos perdiam não raro o juízo. Dois presos conduzidos de Aveiro a Lisboa receberam tais tratos pelo caminho, e possuíram-se de tal aflição pela perspectiva do futuro, que chegando ao seu destino estavam completamente alienados. Uma pobre mulher, rodeada de cinco filhinhos, o mais velho dos quais contava apenas oito anos, conduzida à Inquisição (maldita) perguntava por que a prendiam e qual seria a sua sorte. Divertiram-se os familiares em persuadi-la que ia ser queimada. Num acesso de loucura a desgraçada precipitou-se duma janela abaixo, e quando a foram buscar ao pátio, onde caíra, acharam-na completamente desconjuntada. Esses terrores, que cercavam aquela situação angustiada, produziam o aborto quando as presas vinham grávidas. Nem a beleza e o pudor dos anos floridos, nem a velhice, tão digna de compaixão na mulher, eximiam o sexo mais débil da ferocidade brutal dos supostos defensores da religião. Havia dias em que sete ou oito eram metidos a tormento. Estas cenas reservavam-nas os inquisidores depois de jantar. Serviam-lhes de pospasto. Muitas vezes naquele acto competiam uns com outros em mostrar-se apreciadores da beleza das formas humanas. Enquanto a desgraçada donzela se estorcia nas dores intoleráveis de tratos, ou desmaiava na intensidade da agonia, um aplaudia-lhe os toques angélicos do rosto, outro o fulgor dos olhos, outro os contornos voluptuosos do seio, outro o torneado das mãos. Nesta conjectura os homens de sangue convertiam-se em verdadeiros artistas.
Isto que parece figurar-se um romance ou drama no autor nacional,
confirma-o o estrangeiro, Alfred Demersay, comissário do governo francês em
Portugal e Espanha em 1862, que
examinando os arquivos de Lisboa onde se guardam os processos das inquisições
extintas, diz no seu relatório: L'inquisition
seule a fourni les pièces de quarante mille procès, c'est à dire les éléments
les plus précieux pour écrire I'histoire de cette institution néfaste, et une
mine inépuisable pour les romanciers et les faiseurs de mélodrames...
(Chroniste de Tissuary), que em português quer dizer: Só a Inquisição (maldita)
tem fornecido 40 000 processos, que são os mais preciosos elementos para se
escrever a história desta instituição nefasta, e uma inesgotável mina para os romancistas
e autores de melodramas.
A aquisição do livro de Dellon, mesmo em Portugal
sabemos que é dificílima, não só porque é antigo, mas porque ainda na antiguidade
não podia correr livremente num país onde existia aquele tribunal, promotor de
quantas pesquisas e visitas domiciliares pudesse para descobrir os livros por ele
proibidos: daí veio a sua raridade, a qual redobra em Goa, onde talvez não errássemos dizendo que existe hoje um só
exemplar, cujo possuidor é o conselheiro Rivara, que o trouxe de Lisboa, e lhe
foi oferecido, com mimo especial da terra para onde ia, por insigne bibliófilo,
o conservador da biblioteca pública daquela capital, João José Barbosa
Marreca, hoje falecido, segundo nos informou o mesmo senhor Rivara, quando
logo à sua chegada teve a bondade de nos confiar a sua leitura». In
Charles Dellon (1649-1709?), Relation de L’Inquisition de Goa, 1687, Leyden,
Holanda, Narração da Inquisição de Goa, tradução e notas de Miguel Vicente
Abreu (1827-1883), Nova Goa, 1866, Edições Antígona, Lisboa, 1996, ISBN
972-608-075-4.