«(…) Os nossos amigos goeses entraram logo de seguida, saudando-nos e
felicitando-nos uma vez mais. Eles próprios tinham feito o almoço nas cozinhas
do forte. Sentámo-nos todos à volta da mesa, saboreando pratos deliciosos e participando
alegremente na conversa geral que se seguiu, enquanto os guardas, ao lado, nos
observavam com olhar condescendente. Desta vez havia entre nós alguém que não
conhecia. Era uma jornalista francesa que tinha acabado de chegar de Paris com
o fim de visitar um dos presos, o Bragança Cunha, e que agora se tinha reunido
ao nosso grupo. De vez em quando, a senhora olhava para nós de uma maneta inquisitiva,
como se estivesse a consumir-se em curiosidade. Porém, a conversa entre nós não
convidava a perguntas íntimas, dirigidas a pessoas que mal se conheciam.
Pouco depois, quando tomávamos o café, a jornalista voltou-se súbito
para Lica e perguntou-lhe sem rodeios: O
que é que o fez escolher este lugar para a sua lua-de-mel? Ninguém
estava preparado para tal pergunta e tão abrupta. Estávamos demasiado
envolvidos nos nossos problemas para analisarmos as razões das nossas acções.
Mas a resposta de Lica foi rápida espontânea e saiu-lhe como um suspiro da
alma: Homenagem ao sacrifício.
Decidimos partir para a Índia antes do fim do ano, o que nos deixou com
apenas quatro meses para nos prepararmos para a viagem. Foi um tempo deveras
excitante porque tive a oportunidade de me encontrar com os amigos e colegas de
Lica, tanto portugueses como indianos. Lica tinha chegado a Lisboa muito antes
de mim e feito muitos amigos. Os mais íntimos eram, sem dúvida, Vitória e
Teresa Lavradio, filhas do marquês do Lavradio, cuja amizade perdurou até ao
fim dos seus dias. Foi em casa do marquês que Lica foi apresentado à destronada
rainha de Portugal, D. Amélia de Bragança, que tinha vindo a Portugal, do seu
exílio em Versalhes, com uma licença especial para visitar o grande amigo
marquês do Lavradio, que estava nos últimos dias de vida. Esta foi a primeira e
última visita da rainha depois da implantação da República em 1910. Foi uma reunião muito emotiva
entre grandes amigos, sempre muito unidos, mesmo na enorme adversidade que os tinha
atingido com a extinção da monarquia e durante o exílio na Inglaterra. Foram
horas tristes que marcaram os últimos vestígios de uma era que tinha deixado de
existir.
À medida que o tempo de partir se aproximava, aumentava o meu intenso
desejo de começar a aprender a língua do meu marido. Infelizmente, ele parecia
não ter inclinação ou desejo de o fazer. Andava sempre muito ocupado ou talvez
preocupado com o nosso futuro. A única ajuda que me deu nesse sentido foi ensinar-me
o alfabeto indiano, o devnagari, que
aprendi rapidamente e comecei a usar nas minhas notas para ele. Assim, passei a
escrever-lhe em português, mas com caracteres indianos, o que veio a ficar como
uma espécie de jogo entre nós. Por vezes perguntava-lhe como se preparavam
alguns pratos indianos, que naqueles dias eram ainda quase desconhecidos em
Lisboa. Lica dava-me então uma lista de condimentos, a maior parte deles
completamente estranhos à nossa culinária, acabando por dizer, com ar
convencido: junta tudo e coze bem.
Depois de umas tantas experiências desastrosas, tive de desistir. Só muito
depois é que vim a aperceber-me de que ele não tinha a menor ideia do que fosse
a culinária, haute cuisine ou não,
facto que lhe custava admitir.
Um dia recebemos uma carta de Rama Hegde, o nosso amigo do Forte de Peniche.
Estava doente e precisava de ser visto por um especialista. Com a ajuda de um
amigo de Lica, que era comandante da Polícia de Lisboa, arranjou-se maneira de
trazer o prisioneiro a Lisboa; acompanhado por um guarda e sob a
responsabilidade do meu marido, que ficaria encarregado da parte médica. Aproveitámos
esta oportunidade para convidar para o almoço dois outros goeses que também
conheciam o Rama, o Shencora Camotim e Datta Keni, o nosso best man, que ainda se encontrava em Lisboa. Lica andava
excitadíssimo. Estava a preparar-se para, depois do exame médico, dar
oportunidade ao seu amigo de passar umas horas de bom convívio antes de
regressar à prisão.
Nessa manhã, ao sair para o hospital, voltou-se para mim com um sorriso
verdadeiramente encantador, dizendo à queima-roupa, que os convidados chegariam
para o almoço por volta das 13 horas e que esperava que eu cozinhasse um bom
caril de peixe. Mas, Deus dos céus, como
seria possível? Nunca tal tinha experimentado antes! Quando reparou na
minha expressão de desespero, tentou animar-me, acrescentando: Não vale a pena afligires-te! Corta um coco,
junta-lhe uns tomates e cebola, pó de caril e, no fim, o peixe. Como vês, é
muito fácil, não custa nada. E com aquela última frase desapareceu porta
fora. Nem queria acreditar no que acabara de me acontecer. Tinha de preparar rapidamente
um prato exótico do qual só ouvira o nome e para uns convidados que mal
conhecia. Sempre acabei por encontrar um coco na única delicatesse em toda a Lisboa onde se podiam comprar produtos de
terras distantes, mas levou-me algum tempo e duas facas partidas até poder arrancar
a parte comestível do coco da dura casca que o envolvia. Estava ainda a acabar
de melhorar o mais possível o sabor do meu caril de peixe quando os convidados
começaram a chegar». In Edila Gaitonde, As Maçãs Azuis. Portugal
e Goa 1948 – 1961, Editorial Tágide, F. Oriente, 2011, ISBN 978-989-95179-9-8.
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