Definir o pudor
Pudores masculino e feminino
«(…) Chorar, lamentar-se, corar, orar:o pudor do sentimento é considerado
domínio do homem, a mulher privilegia o pudor corporal. A cada página
encontraremos este pudor feminino, que será rei e senhor até, ao século XVIII e
que hoje se mantém bem vivo, apesar do feminismo. Nada é tão natural na mulher como o pudor, escrevia o padre La
Moyne, é um véu que ela não compra e que
não custa a fazer. Nasce, forma-se, cresce com ela. Os cabelos só lhe nascem
depois deste véu, que ficará quando eles caírem. É de todos os países e de
todas as épocas, de todas as condições e de todas as idades... Quanto ao
homem, o nosso jesuíta não consegue negar-lhe todos os pudores. Mas não são
naturais nele: tendo-lhe Deus doado o seu próprio espírito, há que mostrar-se
digno da oferta. Mas trata-se, quando
muito, de uma premente obrigação de
modéstia...
O pudor é, portanto, o estado original da mulher: ai daquela que o
maltrata! A mulher sem pudor é depravada,
proclama Rousseau, maltrata um
sentimento natural do seu sexo. E Rétif de la Bretonne, abordado por uma
prostituta na rua, responde-lhe com firmeza: Renunciaste ao pudor do teu sexo; já não és uma mulher, o homem já nada
tem a ver contigo. É tentador incriminar a velha misoginia judaico-cristã
para explicar esta ideia de sexo feminino. Contudo, o pudor feminino é bem mais
antigo. É omnipresente na Grécia antiga, imagina-se o Apolo de Belvedere a
tapar-se com a mão como a Vénus de
Médicis? Pelo contrário, Platão não vê com bons olhos as mulheres nuas
no estádio: seriam ridículas, pensa ele, mas, como filósofo íntegro, acha
que não deve ser proibido...
Repete-se o mesmo argumento especioso, sobretudo depois de Plínio, para
declarar natural o pudor feminino: o
corpo de uma afogada flutua de cabeça para baixo para esconder os órgãos
sexuais, ao passo que o afogado flutua de costas. Esta constatação (?), que não
se procura pôr em causa, irá transmitir-se de livro em livro até ao século XVII
para encerrar solidamente a mulher no seu pudor. O cristianismo primitivo vai
acrescentar a este pudor pretensamente natural a sua obsessão paranóica da
sexualidade feminina. Durante quinze séculos vive-se à sombra da imagem de Eva,
a tentadora, que suscitou a queda do homem. Até os médicos, no século XVI, estão
de acordo quanto a definir um desejo mais feminino que masculino. O coito não é
necessário ao homem para a preservação da sua saúde, demonstra Bailly. Mas se a
mulher for privada de companhia masculina, expõe-se a perturbações graves. A
prova, segundo ele, está na frequência das sufocações
da matriz nas viúvas, freiras e donzelas idosas. É uma fome ou sede dessa parte... Chamo-lhe doença, que cessa com
grande dificuldade sem a ajuda do macho. O próprio Paré surge impregnado da
concepção cristã de que a luxúria é fêmea.
Se as fêmeas dos animais fogem do macho logo que estão fecundadas,
explica, é o contrário com as mulheres,
pois elas desejam pelo deleite, não apenas pela espécie. Homem quer de
experiência quer de tradição, é no entanto forçado a admitir, que o desejo
masculino é muitas vezes mais premente que o da mulher... É nestas condições
que se perpetua o pudor feminino, revestido de uma severa proibição sexual. No
Juízo Final, as mulheres ressuscitarão como homens, pensam os integralistas do
tempo de Santo Agostinho: é o único meio de o homem, nesse santo estado (?),
não ser tentado por essa carne funesta! Elas não vão ressuscitar, afirmam os
extremistas: não se diz que os corpos ressuscitarão na sua integralidade, por
mais dispersos em pedaços que possam estar? A mulher terá portanto que
desaparecer, para que Adão recupere a sua costela…(?)
O corpo feminino é negado no além, o seu prazer, na terra. Paradoxo de
uma mulher que, sendo só desejo, se vê a recusar o prazer sexual. La
clef d'Amors, no século XIII,
é o único exemplo que ousa erguer-se
contra esta ocultação da sexualidade feminina e pedir ao homem que adie o seu
prazer. Não será seguido. Montaigne ainda pensa que o prazer
feminino impede a concepção. O Renascimento, a despeito do seu amor pela carne,
não põe em causa este pudor feminino. Mas confere-lhe um outro sentido. Ver uma
mulher nua, segundo Montaigne, arrefece o ardor sexual em vez de incitar o
macho à tentação. No reino de Pegu, explica Montaigne, os homens afastaram-se
das mulheres para tomarem o prazer entre si; aquelas, para tentarem os seus
antigos companheiros, adoptaram vestidos decotados que nada dissimulavam, mas
com isso apenas desgostaram ainda mais os homens dos seus corpos! Viva pois, o
pudor feminino, que alimenta o desejo do homem.
No século XVIII, a laicização da cultura suscita uma crescente racionalização
do pudor feminino. Rousseau, numa tentativa para justificar um pudor
natural e exclusivamente feminino, invoca argumentos fisiológicos. Se a mulher está sempre pronta a receber o
homem, e não o inverso, é portanto necessário que a iniciativa pertença a este
último. Que seria da espécie humana se se alterasse a ordem do ataque e da
defesa? O assaltante escolheria ao acaso tempos em que a vitória seria
impossível; o assaltado ficaria em paz, tendo embora precisão de se render,
perseguido sem descanso, sendo então demasiado fraco para sucumbir; enfim, não
se permitindo o poder e a vontade, sempre em discórdia, partilhar os desejos, o
amor deixaria de ser o sustento da natureza, seria o seu destruidor e flagelo.
Um texto que exasperaria as mulheres emancipadas, mas quem sabe se
Jean-Jacques, ao descobrir a actual
igualdade dos sexos, não veria aí a confirmação da sua teoria do pudor?»
In Jean-Claude Bologne, Histoire de la pudeur, Olivier Orban, 1986, 0História do Pudor, Editorial Teorema,
Círculo de Leitores, 1996, ISBN 972-42-1374-9.
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