domingo, 18 de agosto de 2013

O Anacronista. Crónicas. Manuel António Pina. «… mas os nossos economistas liberais estão já a servi-los vorazmente à mesa, aos pobres, aos reformados, aos velhos, aos fracos. Sem sombra de pecado, isto é, de cultura, que é o mais preocupante»

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Sem Sombra de Pecado
«(…) No meio disto tudo, cultura é ter um óleo de Vieira da Silva na sala de jantar ou no cofre-forte ou investir num contador indo-português em algum leilão de Leiria & Nascimento. E a ostentação mais primária tomou-se no sinal exterior de felicidade e de inocência da parte dos que (e são cada vez mais) alegremente se vão libertando dos encargos da consciência moral. Curioso é que a espécie de cultura económica que cauciona a predação social instalada não prescinda de pregar ética às presas...
Quem- lê habitualmente estas crónicas sabe que aqui não se gosta (e não se gosta é o mínimo que é possível dizer) de economistas. Se calhar injustamente, as generalizações são sempre injustas. Mas convenhamos que exis tem boas razões para isso. Basta olhar em volta.
Cristo, que não percebia nada de Finanças, expulsou à chibatada os economistas do Templo, e Dante, vivesse ele em Portugal e soubesse o que nós sabemos hoje, ter-lhes-ia certamente destinado um penoso lugar no último círculo do Inferno. O triunfo da Economia passa pela expulsão dos poetas e dos visionários da cidade. Quem se surpreenderá, pois, que a Poesia, sob todas as suas incertas e gratuitas formas, seja o inimigo mortal dos mercadores?

De facto, a vulgata económica capitalista e a sua cultura de clã contaminaram, como uma peste, a nossa vida e a nossa alma colectivas. Os melhores de nós vagueiam agora, como indefesos sobreviventes, no pesadelo climatizado finissecular que resta da antiga cultura. Passou o tempo de queimar livros, agora compram-se (e os escritores também) sob a forma de best sellers; a religião formalizou-se e ritualizou-se até perder qualquer significado cultural; a própria História foi reescrita.
Swift, há 250 anos, sugeriu aos ricos que comessem os pobres. Na altura ninguém o levou a sério, mas os nossos economistas liberais estão já a servi-los vorazmente à mesa, aos pobres, aos reformados, aos velhos, aos fracos. Sem sombra de pecado, isto é, de cultura, que é o mais preocupante.

In Jornal de Notícias, 11/11/92

In Manuel António Pina, O Anacronista, Crónicas, Edições Afrontamento, 1994, ISBN 972-36-0323-3.

Cortesia de E. Afrontamento/JDACT