Sem Sombra de Pecado
«(…) No meio disto tudo, cultura
é ter um óleo de Vieira da Silva na sala de jantar ou no cofre-forte ou investir num contador indo-português em
algum leilão de Leiria & Nascimento. E a ostentação mais primária tomou-se
no sinal exterior de felicidade e de inocência da parte dos que (e são cada vez
mais) alegremente se vão libertando dos encargos da consciência moral. Curioso
é que a espécie de cultura económica
que cauciona a predação social instalada não prescinda de pregar ética às
presas...
Quem- lê habitualmente estas crónicas sabe que aqui não se gosta (e não se gosta é o mínimo que é possível
dizer) de economistas. Se calhar injustamente, as generalizações são sempre
injustas. Mas convenhamos que exis tem boas razões para isso. Basta olhar em
volta.
Cristo, que não percebia nada de Finanças, expulsou à chibatada os economistas
do Templo, e Dante, vivesse ele em Portugal e soubesse o que nós sabemos hoje,
ter-lhes-ia certamente destinado um penoso lugar no último círculo do Inferno.
O triunfo da Economia passa pela expulsão dos poetas e dos visionários da
cidade. Quem se surpreenderá, pois, que a Poesia, sob todas as suas incertas e
gratuitas formas, seja o inimigo
mortal dos mercadores?
De facto, a vulgata económica capitalista e a sua cultura de clã
contaminaram, como uma peste, a nossa vida e a nossa alma colectivas. Os melhores
de nós vagueiam agora, como indefesos sobreviventes, no pesadelo climatizado
finissecular que resta da antiga cultura. Passou o tempo de queimar livros, agora
compram-se (e os escritores também) sob a forma de best sellers; a religião formalizou-se e ritualizou-se até perder
qualquer significado cultural; a própria História foi reescrita.
Swift, há 250 anos, sugeriu aos ricos que comessem os pobres. Na altura
ninguém o levou a sério, mas os nossos economistas liberais estão já a servi-los
vorazmente à mesa, aos pobres, aos reformados, aos velhos, aos fracos. Sem sombra de pecado, isto é, de cultura,
que é o mais preocupante.
In Jornal de Notícias,
11/11/92
In Manuel António Pina, O Anacronista, Crónicas, Edições Afrontamento,
1994, ISBN 972-36-0323-3.
Cortesia de E. Afrontamento/JDACT