O massacre judaico de Lisboa de 1506
«(…) Expulso de Espanha, Ibn Verga seria uma das vítimas do baptismo
forçado de 1497 e terá deixado
Portugal em 1508, acabando por
falecer na Flandres. Deixou uma obra, intitulada Shebet Yehudah (O Ceptro de Judá). Este criptojudeu
explicaria a fabricação do milagre do
crucifixo. Também foi através da sua obra que ficámos a saber que, na madrugada
de 17 de Abril de 1506, havia
sido descoberta uma celebração pascal judaica secreta, de que resultaria a
prisão de dezasseis cristãos-novos. Dois dias depois, precisamente no domingo
de Pascoela, os cristãos-novos seriam libertados, a troco de elevado preço e considerável
influência, gerando um mal-estar no seio da população cristã de Lisboa. Quanto
à descrição do milagre, há várias
versões (Góis, Osório, Verga), mas o autor do panfleto alemão, que parece ter
sido o único relato de uma testemunha ocular do episódio, afirma que não conseguiu
ver a luz divina, embora as duzentas pessoas que enchiam a igreja de S.
Domingos lhe tenham garantido ter visto. Também a frase proferida pelo infeliz cristão-novo
é motivo de controvérsia. Damião de Góis diz que o cristão-novo terá
associado a luz a uma candeia acesa ao lado do crucifixo. Jerónimo Osório
afirma que o cristão-novo terá duvidado que um pedaço de pau pudesse fazer um
milagre, versão que o panfleto alemão corrobora, com o acréscimo da sugestão
por parte da vítima de que se se regasse o crucifixo, logo se apagaria a luz.
Seria uma improvável provocação, que o mais incauto cristão-novo (ou velho) não
arriscaria.
A testemunha ocular alemã, autora do citado panfleto, descreve o horror
da carnificina de forma perturbada, considerando-a inacreditável para quem a
não tivesse presenciado, como ele o fez com os
seus próprios olhos. Do mesmo modo, não deixa dúvidas sobre o papel dos
três frades dominicanos, que percorreram a cidade durante o massacre, erguendo
cruzes e gritando: Morte aos judeus!
A instigação dominicana à bárbara violência foi, pois, determinante para a loucura
sanguinária que se apoderou do povo de Lisboa. Ao invés de a condenar, os
dominicanos atiçaram o ódio, participaram na carnificina, tornando-se nos
principais responsáveis morais e materiais do massacre judaico de 1506.
Trinta anos depois, a Inquisição (maldita) era estabelecida por acção irredutível
de João III, proporcionando à facção intolerante da Igreja Católica, uma
perseguição oficial, estatal e ilimitada, dos crimes de heresia, que é como quem diz, do judaísmo persistente, apesar do fundado terror experimentado, tanto
por cristãos-novos como por cristãos-velhos. O massacre de 1506 foi o
prenúncio da vitória da intolerância e constituiu um corte com as práticas
tolerantes dos nossos primeiros monarcas em relação às comunidades judaicas até
finais do século XV. Este funesto episódio constituiu uma premonição, não da
inevitabilidade do estabelecimento da Inquisição (maldita), mas da inabalável
vontade clerical e régia de extirpar o pluralismo religioso e étnico da
sociedade portuguesa. Actuasse o rei João III à semelhança dos seus
antecessores e não teria sido necessário que o Marquês de Pombal inviabilizasse
a intolerância por decreto. Na realidade, a partir do último quartel do século
XVIII, o antijudaísmo esfumou-se sem contestação popular, como se nunca houvera
existido.
Isso deve-se ao facto de aqueles que estimulavam a intolerância
estarem, a partir daí, manietados, impedidos da manipulação popular, o que resultou
numa solução eficaz para um persistente problema social que parecia insanável,
apesar dos esforços de homens como o padre António Vieira, Luís da Cunha, o
Cavaleiro de Oliveira e Ribeiro Sanches. O massacre de 1506 antecedeu uma
viragem social, que contribuiu para a decadência deste povo peninsular, como
muito bem assinalou Antero de Quental em 1871
nas Causas da decadência dos povos
peninsulares nos últimos três séculos. A Câmara Municipal de Lisboa, em
associação com as comunidades judaica e católica, inauguraram em 22 de Abril
de 2008, no Largo de São Domingos, o epicentro da tragédia,
monumentos de desagravo aos judeus vitimados pela intolerância, o que constitui
um indiscutível gesto de justiça póstuma». In Breve História dos Judeus em Portugal,
Jorge Martins, Nova Vega, colecção Sefarad, 2011, ISBN 978-972-699-920-1.
Cortesia de Nova Vega/JDACT