quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Pedras Que Falam. Campos Júnior. «Na salita humilde e rústica, onde apenas podiam caber quatro ou cinco pessoas. Diogo Silveira convidava a desconhecida a sentar-se na mais segura das suas quatro velhas cadeiras»

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A Misteriosa Protectora
«(…) Muito do coração vos agradeço a gentileza-disse a dama carinhosamente. - Nada tendes que agradecer-me. A minha mágoa é que João Alberto não esteja agora na aldeia para vos mostrar ali dentro da escola com os seus rapazes, como pai que tivesse sessenta filhos e de todos eles fosse querido e admirado. Como ele fala aos garotos e as lindas coisas que sabe contar-lhes! De tal modo, minha senhora, que até os mais pequenos lhas entendem e sentem!
 - Costuma sair daqui frequentemente? - Todos os dias, depois de dar aula. - Talvez de visita a pessoas das suas relações? – perguntou a dama com a voz um pouco turbada. - Não, minha senhora.- Vai dar lições particulares de português e francês, para o curso dos liceus, aos filhos de uns lavradores ricos, uns cinco, dos que mais podem aqui por estes sítios. Naquela sua tamanha lida, cedo virá a envelhecer mal empregado!
Corno se a houvessem comovido estas palavras do velho mestre-escola a dama do véu negro teve um arrepio nervoso que a fez estremecer. - Aceito o convite - decidiu numa tremura de voz - e seria bondade vossa que me désseis a honra de ir convosco. Tenho de seguir para longe e receio demorar-me por causa de minha mãe, uma doente que precisa de especiais cuidados. - Pois não, minha senhora. Estou às vossas ordens. E se quereis que vossa mãe me dê também a honra de entrar em minha casa... - Não, muito obrigada. Qualquer coisa a fatiga e lhe sobressalta o pobre coração amargurado. Irei eu sozinha convosco.
A jovem foi ter com a mãe, murmurou-lhe umas palavras em voz baixa, ajudou-a a entrar no, automóvel e voltou agilmente para junto do velho Diogo Silveira. E lá foram os dois para o outro extremo da aldeia. Ficou atónita aquela espantada gente que se tinha juntado no terreirozito da escola. O Mestre-Velho, todo ancho com aquela senhora, toda de preto como, enviuvada! Talvez fidalga ou alguma estrangeira, alguma princesa! Nova e airosa, bem se via que era por aquele seu passo leve e miudinho como o das andorinhas. E bem podia ser que fosse lindo como as estrelas aquele seu rosto coberto, de negrumes, como também às vezes no céu um farrapo de nuvem negra encobre a face resplandecente de uma estrela.
Mas o que teria o Mestre-Velho com aquela criatura que nunca ninguém vira ali na aldeia, e para onde iriam os dois, deixando ficar a outra desconhecida, a velha, muito bem sentada naquela caranguejola roncadora que ali ficara arquejante, como se estivesse a deitar os bofes pela boca fora?

Na salita humilde e rústica, onde apenas podiam caber quatro ou cinco pessoas. Diogo Silveira convidava a desconhecida a sentar-se na mais segura das suas quatro velhas cadeiras. - Perdoai a pobreza de tudo isto e fazei-me a mercê de estardes como em casa de um criado vosso. - Por amor de Deus, não faleis assim! Estarei aqui no desafogo de quem encontra guarida em casa de pessoa amiga, que o fosse há muitos anos. Levantou o longo e pesado véu e sentou-se com graciosa gentileza. Maravilhado então com aquele rosto de peregrina beleza, o Mestre-Velho nem se atrevia a sentar-se também.
Nos grandes olhos negros daquela beldade, que não teria mais de vinte e cinco anos, havia uma doce e entristecida luz, que suavemente lhe iluminava as faces de pálida alvura. Seria encantadora aquela pequenina boca vermelha quando sorrisse na consoladora alegria de viver. Bendito Deus! - exclamava de si para si, numa expressão de assombro, o pobre do mestre-escola – Nunca em dias de minha vida vi lindeza assim! - Então não vos quereis sentar, senhor Diogo Silveira? - Sento, sim, minha senhora - respondeu-lhe ainda com maior acanhamento, como se tivesse ali diante de si uma desencantada princesa dos velhos contos de outras eras.
 - Falai-me então, do vosso colega João Alberto, do seu viver, da sua escola, de tudo o que dele souberdes». In Campos Júnior, Pedras Que Falam, romance histórico, edição Romano Torres, Lisboa, 1953.

Cortesia de RTorres/JDACT