De profundis clamo ad te, domine
«(…) - Deixai-me só. Os monteiros chamaram os cães. Num tumulto que
todos se esforçam por moderar, a sala esvazia-se rapidamente enquanto Pedro
acrescenta ao mesmo tom duro que usou: - João Afonso, mandai que tragam aqui
Pero Coelho e Álvaro Gonçalves. Afonso Madeira, vós ficareis e tangereis para
mim. A última frase, dirigida ao jovem escudeiro, foi dita com uma inflexão
diferente, mais suave. Álvaro Pais captou essa diferença, que já esperava. Por
isso, ao encaminhar-se para a saída, trava o braço de Afonso Madeira e
murmura-lhe ao ouvido: - Se curais da sua honra, porfiai por demovê-lo de
castigar Pero Coelho e Álvares Gonçalves…
Depois segue caminho, deixando o rapaz a olhá-lo, perturbado com a
missão que assim tão inesperadamente lhe foi confiada. Sente esse olhar pregado
às suas costas, mas abandona a sala sem se deter e os dois guardas, mal ele
sai, fecham a porta. Como já esperava, o conde de Barcelos, a quem não escapou
esta manobra, encontra-se parado no corredor, pronto a retomar o assunto que os
preocupa. A uma interrogação muda, responde esse escudeiro, Afonso Madeira, não
é moço de muito siso e em verdade não me parece boa cousa a privança que tem
com el-Rei, mas quem sabe, talvez hoje queira e possa fazê-lo ouvir a razão.
Sim, diz o conde, el-Rei quer muito a Afonso Madeira. E baixa a cabeça num
embaraço que pretende esconder. Álvaro Pais desafia esse embaraço: - Muito. De
mais.
Na corte não é segredo estritamente guardado, essa afeição do rei pelo
escudeiro. Os que o conhecem melhor, e sobretudo aqueles que o amam, dizem a si
mesmos que ela há-de ter nascido, como fruto de árvore envenenada, do violento
desconcerto anterior que abalou Pedro ao saber da morte de Inês. E a si mesmos
repetem que ele continua a procurar a companhia de mulheres, tanto assim que,
no próprio ano em que foi aclamado rei, uma certa D. Teresa Lourenço, dama
galega, deu à luz um filho seu, agora entregue aos cuidados do mestre da Ordem
de Cristo.
No entanto,, o assunto perturba-os e por isso Álvaro Pais apressa-se
agora a continuar: - Porém vos digo que eu pediria, Deus se amerceie de mim, eu
pediria até ao demo, se tal fosse de proveito, para que el-Rei poupasse Pero
Coelho e Álvaro Gonçalves. É bem triste ver dois homens tão principais, um
juiz, o outro meirinho-mor do reino, jazendo na masmorra como malfeitores.
João Afonso encolhe os ombros, pouco impressionado. A sua preocupação é
outra, não pensa nos prisiuoneiros e sim em Pedro. A mim, replica, dói-me
sobretudo que ele possa quebrar a sua palavra, que é feia cousa e pecado maior
por ser palavra de rei. – Já a quebrou, pois aí os tendes, cativos. O mais que
venha a fazer… - Mas ele jurou! Vós o ouvistes como eu, em Canavezes, ante a
rainha e o arcebispo de Braga. El-Rei põe a sua alma em grande perigo. Álvaro
Pais suspira, cansado. Sim, põe a alma em perigo. Contudo, no seu íntimo, não é
isso que mais o atormenta. Porque, para ele, amando embora Pedro, como ama, a
salvação do reino está acima da salvação da alma do rei. Mas para não melindrar
escrúpulos de cavaleiro, escolhe cuidadosamente as palavras.
- Por ora, o que me dá mais
cuidado é que el-Rei perderá a sua boa fama. Todos dirão que os reis de
Portugal e de Castela erram muito, indo contra as suas verdades. Não é boa
cousa, essa. Se a nova chega a Roma, aí teremos o papa a meter-se em negócios
de Portugal. E depois, senhor, qual é a culpa de Pero Coelho e de Álvaro Gonçalves? Os dois caminham devagar,
lado a lado. Ao ouvir esta pergunta, João Afonso pára. A culpa? Pela santa Virgem, a culpa é conhecida, vós o
sabeis como eu. A morte de D. Inês, a quem el-Rei tanto queria. É bem certo,
pensa Álvaro Pais, que o conde de Barcelos cuida do rei antes de cuidar do
reino e todo ele se inflama com histórias de amores, de donas e donzelas. É bem
certo que nele falam mais alto a idade e a condição. – Sim, D. Inês. Porém a sua morte foi
sentença de el-Rei Afonso. E… direis vós, senhor, em vossa consciência, que o
reino não corria grande perigo por
amor de D. Inês? Direis vós, em vossa consciência, que a vida do senhor
Infante Fernando estava segura
enquanto ela vivesse?». In João Aguiar, Inês de Portugal, pequenos
Prazeres, Edições ASA, 1997, ISBN 972-41-1822-3.
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