domingo, 11 de agosto de 2013

Vida Ignorada de Leonor Teles. António Cândido Franco. « O primeiro resultado dessa convulsão foi um perturbante choque da memória. Viu de sopetão a memória escancarar diante de si os seus pesados portões de ferro, até aí cerrados»

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O Comércio do Invisível
«(…) Leonor Meneses fez um trejeito de desagrado por intromissão tão atrevida; sabia-lhe a descaro a portuguesa língua traçada assim pela soberba do latim. As duas meninas não se desentendiam mais, porque uma se mostrava onde a outra se escondia. Mal a Teles porém deixava o céu escuro e retirado onde vivia, a luz petulante da outra Leonor tremia, incomodada e mal-humorada. O cónego por sua vez deu em ficar pensativo. Aquela Leonor mostrava entendimento a mais, para ser apenas fria ou sisuda.
No outro dia vieram ao paço de Barcelos o arcebispo de Braga e o prior do Hospital, Álvaro Gonçalves Pereira, que tinha casa em Leça, a menos de dez léguas de Barcelos, e estivera ligado à criação de Guiomar Pacheco e ao seu casamento com João Afonso Telo. Chamaram-na ao estrado onde o conde costumava receber os seus contiados, mas nada conseguiram tirar dela. A pequena Leonor viera oculta na sua capa escura, o rosto protegido na mantilha de sombra. Envolvia-a um escudo de silêncio que nenhuma palavra do arcebispo ou do prior obteve atravessar. O silêncio, quando não acontece por acidente, é tão impenetrável como a treva e tão isento como coisa nenhuma.
Guiomar, que conseguira trazer a sobrinha com algum esforço à presença dos dois homens, desculpou-se. - É uma donzela bravia, que não cura de atenções nem de falas. Descuidai dela, senhores. Desinteressaram-se do caso, mas cada um ficou ciente que a filha de Martim Afonso Teles, além de contrastar com primos e irmãos, cujas manhas eram conhecidas e comentadas com benevolência, guardava dentro de si alguma discrição. Logo se veria se o caroço que dentro dela se escondia valia ou não a ingressão num mosteiro de religiosas. Tratava-se duma filha segunda e só lhe restava no porvir próximo dois caminhos, ou o casamento fora de casa, com um rico-homem da sua condição, ou o noviciado e os votos numa casa de religiosas.
Que se passava porém no interior daquela menina? Na verdade nada se passara até ao momento em que o cónego de Braga começara a vir às tardes, no meio das religiosas que velavam, apresentar as suas histórias. Era tão-só um ser que não dava conta de si e do mundo; vivia numa meia obscuridade, que era a razão neutra da sua não existência. E o não existir da menina traduzia-se e concentrava-se na essência olorosa que ela um dia surpreendera num escuro recanto da copa da tia e que sempre regressava mais possante ao seu ser. Se mais tarde lhe tomassem uma recordação desses primeiros dias de Barcelos, ela só lembraria a fragrância inebriante em que se apagava. Não era de somenos, porque se lhe pedissem então que a definisse, ela diria com sentida surpresa: - Felicidade!
Depois que o cónego chegara, sentira a menina agitar-se dentro de si um mar encapelado, que foi o primeiro sinal da sua vida íntima, o acordar da sua essência. Aqueles relatos sobre as primeiras alvoradas do mundo, com as gerações de Adão povoando a Terra do castigo, depois de abandonarem as plagas do Paraíso, abalaram o seu ser e despertaram nele correntes fortes e desencontradas, que, ao porem-se em movimento, embateram com estrépito umas nas outras. Estavam em construção os corredores da sua alma; notavam-se-lhe altas arcadas, que cavavam naquela novidade estradas largas. Em breve, por esse amplos respiradouros, galgariam, poderosos e velozes, caudais inúmeros, torrentes de pura energia invisível. Os motivos do cónego de Braga nada mais eram que os catalisadores que actuavam junto de Leonor como poderosos agentes do seu despertar.
O primeiro resultado dessa convulsão foi um perturbante choque da memória. Viu de sopetão a memória escancarar diante de si os seus pesados portões de ferro, até aí cerrados. Sobrou-lhe, nu, sem véus, todo o passado recente. Cor, espessura, peso, brilho, tudo lá estava como se esse mundo fantasmático fosse feito de matéria e tivesse a nitidez da realidade física do presente. Presenciou o momento em que a rainha-mãe de Castela fugira apressada de Toro, depois do pai, Martim Afonso Teles, cair assassinado pelas frechas ervadas dos besteiros e o corpo ser recolhido, a medo, em branca mortalha, pelos cavaleiros da rainha. Recordou a viagem e a agonia em Évora da sua real protectora, envolvida num lençol branco, boca descarnada, bubão entalado na garganta, olhos sumidos e baços. Assistiu depois à viagem do préstito do infante em direcção de Santarém, onde a rainha o esperava com os filhos de Inês e de Constança. Esforçando um pouco a visão, era capaz até de seleccionar, no meio dessa espiral infinita de momentos e sucessos, o seu próprio nascimento. Lá estava a mãe, Aldonça Vasconcelos, nos braços de duas servas vestidas de burel, numa câmara severa do paço de Zamora, gemendo pontadas dolorosas e suando perlas geladas».

In António Cândido Franco, Vida Ignorada de Leonor Teles, Edições Ésquilo, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-8092-59-5.

Cortesia de Ésquilo/JDACT