quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Embaixador João Pequito. Colecção Beneméritos SCML. Ana Gomes. «Um genuíno espírito livre, que a ficção literária certamente encaixaria no perfil do anti-herói: provocador, excessivo e inconvencional. Mas também generoso, franco e solidário»

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Introdução
«Filho de abastados proprietários alentejanos, fez do mundo a sua casa. Diplomata de carreira, preferia a frontalidade à mera cortesia. Solteiro por vocação, alimentava assiduamente uma teia de sólidas amizades que prezava como uma família. Apesar de valorizar a poupança no dia-a-dia, não se privava dos detalhes que maior satisfação lhe emprestavam: os prazeres sensoriais do quotidiano, as viagens pelo mundo e o festivo convívio com os amigos, embrulhado em paladares e conversas animadas. Exuberante no seu insaciável consumo da vida, mantinha discretos alguns gestos de solidariedade e outras consensuais qualidades que facilmente lhe granjeariam o elogio dos demais. Mas não era o reconhecimento público que o movia. Era o gozo de viver cada dia, sempre fiel a si próprio.
Num permanente equilíbrio entre os extremos onde gostava de morar, João Eduardo Nunes Oliveira Pequito revela-se como uma figura complexa, intensa e fascinante. Nos invariavelmente saudosos testemunhos dos que o conheceram, surge como um bon vivant, amiúde irreverente e sempre descomprometido. Um genuíno espírito livre, que a ficção literária certamente encaixaria no perfil do anti-herói: provocador, excessivo e inconvencional. Mas também generoso, franco e solidário.
Se fosse personagem de uma história imaginada, certo é que desempenharia o papel de protagonista. Mas, porque a realidade consegue ultrapassar a ficção, irrefutável é o lugar que ocupa na história da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, enquanto um dos seus maiores beneméritos no século XXI. Posição conquistada ao ter eleito, depois de prolongada ponderação e meticulosa avaliação, a secular a instituição da capital como a herdeira dos seus avultados bens, num gesto de generosidade invulgar.
Invulgar é um apelido que assenta como uma luva ao embaixador João Pequito, como faz prova a narração da recheada viagem que foi a sua vida. Uma jornada que arranca em Lisboa no ano de 1925, poucos meses antes dos pronunciamentos ocorridos em várias divisões militares do país, conduzindo à instauração de uma ditadura militar. Convulsão que pôs fim à I República e abriu caminho ao Estado Novo, regime político que viu vigorar, com desagrado, até às vésperas de completar meio século de existência. Se cresceu sob o signo do sistema liderado com mão de ferro por Salazar, já não envelheceu debaixo dos seus auspícios, recebendo com entusiasmo a democracia para a qual a revolução do 25 de Abril de 1974 abriu portas em Portugal.
Desde a infância vestiu o papel de viajante, para o qual demonstrou ter verdadeira vocação ao longo da vida adulta, enquanto diplomata de carreira. No início, era a obrigação filial de seguir a família nas frequentes mudanças de morada pelo território nacional, fruto das nomeações do pai, magistrado de profissão, para distintas comarcas judiciais do país. Assim se compreende que João Pequito tenha concluído os primeiros estudos na Covilhã, seguindo depois para Santarém, cidade onde frequentou o liceu, para só mais tarde regressar à sua cidade natal, quando ingressa na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Depois, foram as exigências profissionais enquanto membro do corpo diplomático português, que o fizeram seguir rumo a destinos como Paris, Hong-Kong, Roma, Rio de Janeiro, Bruxelas ou Cidade do México, locais onde exerceu funções ao serviço do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE).
Apesar de ser um cidadão do mundo, com genuína natureza cosmopolita, não esqueceu a genética familiar, com profundas raízes no solo do Alentejo. Por isso, entre as frequentes deslocações à escala do globo, o diplomata jamais renunciou ao insistente regresso a Gáfete, pequena freguesia alentejana, de onde era originário o pai, e na qual a família Pequito residiu durante prolongadas temporadas. Ostentava mesmo um orgulho salutar no seu ancestral berço alentejano. Quando confrontado com a franqueza desarmante que o caracterizava, respondia com recurso ao humor, arte que dominava com mestria: apresentava-se como uma improvável mistura de diplomata e alentejano, jogando habilmente com os estereótipos que transformam o diplomata no representante da cerimónia polida e o alentejano em sinónimo de frontalidade genuína.
Tanto na vida pessoal como na profissional, optou sempre por tomar as posições que julgou adequadas, indiferente à aprovação ou censura exteriores. Teve a ousadia de manter-se fiel aos valores que escolheu como seus. Nunca enveredou em filiações partidárias, mas tinha sólidas concepções sociais e políticas das quais jamais abdicou. Mesmo quando o cenário político o desaconselhava. Assim se podem entender gestos profissionais incomuns, como um pedido de licença ilimitada, graças ao qual se afastou temporariamente da carreira em 1968, para só regressar depois de 1974. Ou a assumpção, um ano depois, em pleno vigor do PREC, das funções de presidente da comissão ministerial de saneamento e reclassificação criada no seio do MNE, devido à qual terá inevitavelmente conquistado algumas animosidades. Ou mesmo a entrada na disponibilidade simples em 1984, a seu pedido, deixando precocemente a carreira diplomática». In Ana Gomes, Embaixador João Pequito, Colecção Beneméritos SCML, Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, Lisboa, 2011, ISBN 978-972-8761-90-5.

A amizade de Armando Mafaldo
Cortesia da SCML/JDACT