sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Garrett. Memórias Biográficas. Ao rei (jure uxoris) Fernando II. Francisco Gomes Amorim. «… depois de ter lido o Camões, mais que sufficientes para pôr ponto nos meus enthusiasmos de artista pelas tribus do Amazonas e dos seus tributários. A sociedade dos mundurucus e dos jurunas começava a tornar-se-me medio-cremente agradável»

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Introducção
«(…) Fez-se impensa claridade nas trevas que me envolviam. A luz, apesar de vir de muito longe, era tão intensa, que illuminou a profundez das matas virgens, e mostrou-me n'ellas prodígios em que a minha vista não attentára nunca! Era a repetição das scenas do paraizo. Havia comtudo a differença de que, caida a venda da minha innocencia, achava-me effectivamente n'um éden, mas sem sciencia bastante para poder guiar-me fora d'elle!
Voltei ao Pará; e, após alguns annos de hesitações e desejos, escrevi ao auctor do livro que me havia transformado: contava-lhe as minhas desventuras; os trabalhos que passára; a vida material e quasi de escravidão que vivia ainda; e dizia-lhe quaes eram as aspirações que despertara em mim a leitura do seu poema sublime. Logo, porém, que despedi das mãos a carta, voltaram-me novamente as dúvidas e receios, que tanto tempo me impediram de a escrever; e conclui que fora grande temeridade deixál-a partir, porque certamente ficaria sem resposta. Como ousaria eu, creança, humilde e obscuro, esperar que o semi-deus baixasse do olympo até mim, para responder-me? Ignorava ainda que quanto maior é o homem mais os seus actos se approximam dos da divindade; e que só a verdadeira grandeza não julga humilhar-se quando desce a proteger os que se acolhem á sombra d'ella. E esquecia-me também de que o auctor do Camões fora já pobre emigrado, como eu, e que não são insensíveis á dor alheia os que uma vez padeceram em misero desterro.

Um anno depois, a 19 de Fevereiro de 1846, levou-me o navio Conceição a seguinte carta:
  • Lisboa, 5 de Outubro de 1845. - Ill mo  sr. Francisco Gomes de Amorim. - Recebo muito retardada a sua carta de 25 de Janeiro d'este anno. E confesso-lhe que me enterneceu deveras a pintura dos seus padecimentos. Em quê, porém, e como poderei eu alliviál-os? - Se v. s.a estivesse aqui ou se para aqui se regressasse, eu faria quanto em minha mão estivesse para melhorar a sorte de um patrício que me parece digno de toda a estima. Acredite que lhe fallo com toda a sinceridade. O estado de moléstia em que estou ha bastante tempo, me impede de ser mais extenso como eu quizera ser para o consolar, se é que as minhas letras para isso podem contribuir. Mas realmente não posso mais, e peço-lhe que creia que sou com verdadeira sympathia. De v. s.a muito attento venerador e creado. J. B. de Almeida Garrett.
Assim como o seu livro tinha transformado o meu espirito, esta carta mudou inteiramente as condições da minha existência. - Se v. estivesse aqui ou se para aqui se regressasse - dizia elle - eu faria quanto em minha mão estivesse para melhorar a sorte de um patrício que me parece digno de toda a estima. – Que mais era necessário para tentar a imaginação de quem tinha apenas dezoito annos, recentemente acordada e posta em movimento pelo maior génio poético do seu tempo?! Eu desejava instruir-me; e fora com esse intuito que me dirigira ao grande mestre; estudar sob a sua direcção, principalmente; estudar com elle, e estudál-o, para ver se descobria as causas do seu immenso talento, a arte, que elle tinha, como ninguém, de commover e de enthusiasmar os que o liam! Parecia á minha ingenuidade que o contacto, a convivência, a proximidade de tão prodigioso engenho, devia necessariamente revelar-me as origens da sua graça inimitável; patentear-me os segredos da sua maravilhosa potencia; e conceder-me poder, não imitál-o, nem sequer rastejál-o, mas polir-me no seu trato intimo; lapidar a minha modesta intelligencia com os diamantes finíssimos da sua.
Este era o meu sonho de então; e, para realisál-o, não haveria perigos que eu não affrontasse, tormentos que não padecesse resignado. Tinha pouca idade; escasseavam-me os recursos para emprehender a viagem; e atemorisavam-me algumas pessoas com a perspectiva da miséria, que de novo me assaltaria no meu regresso á pátria! Que importavam taes obstáculos a quem vivia, desde o berço, costumado a luctar com elles?! Fôra-me porventura mais propicia a terra estranha? A repugnancia que eu sentia pela carreira commercial, e o gosto precoce das viagens aventurosas, levaram-me, na infancia ainda, para o seio das florestas. Cinco annos de vida selvagem, desde 1839 até 1844, pareciam-me, depois de ter lido o Camões, mais que sufficientes para pôr ponto nos meus enthusiasmos de artista pelas tribus do Amazonas e dos seus tributários. A sociedade dos mundurucus e dos jurunas começava a tornar-se-me medio-cremente agradável. Achava, é certo, mais esplendidas as florestas, mais imponentes os rios e os lagos, mais bella a natureza e todas as suas manifestações prodigiosas; mas… dispensava o concurso das onças, das cobras, dos jacarés, das mil variedades de monstros, que esfriam um pouco a curiosidade dos viajantes. E chamavam-me desejos ardentes de saber, e as saudades da terra em que nasci, e dos que ainda então n'ella tinha… No mesmo dia 19 de Fevereiro, em que recebi a carta do poeta, resolvi que me aproveitaria do primeiro navio que saísse, para n'elle regressar á pátria». In Francisco Gomes Amorim, Garrett, Memórias Biográficas, Ao rei-consorte Fernando II, Conservador da Biblioteca e Museu de Antiguidades Navaes, Sócio da Academia Real das Sciencias de Lisboa, do Instituto de Coimbra, da Real Academia Hespanhola de Historia, Imprensa Nacional, Lisboa, 1881.

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