Lisboa e as antigas casas de comeres. Dos produtos e dos preços
«(…) A qualidade da confecção era sagrada. O mestre, com loja aberra, estava assistindo obrigatoriamente na casa do forno da sua loja, de avental,
seguindo atentamente as assaduras e o fabrico de pastéis. Não lhes era
permitido cozer pão, privilégio das
padarias, que, por seu lado, eram impedidas de utilizar os seus fornos em trabalhos
do foro e competência exclusiva dos pasteleiros. Mas, entre 1554, data do primeiro regimento dos pasteleiros de Lisboa, e 1762, data da terceira versão do dito regimento, muita coisa mudaria na actividade
destes lojistas, que não podiam ficar
indiferentes à chusma de estrangeiros que diariamente desembarcava em Lisboa,
nem à mudança de hábitos das populações residentes. Não é, pois, de estranhar,
que as cadeiras do exame para mestre pasteleiro tenham sofrido, no
regimento de 1762, uma importante
reforma, passando a incluir como provas práticas obrigatórias este curioso conjunto:
- um rolo folhado de quarta, um pastel de triângulo do mesmo, uma empada de um peru ao vivo, uma empada de uma lampreia grande, uma empada de meia-lua, uma empada de peixe inteiro, um pastelinho de vintém e, finalmente, um pícaro, como era designado o pastelinho de dez réis alçado, democrática iguaria, ao alcance de todos.
Era, ainda, do apetitoso programa
confeccionar uma torta doce e uma torta com azedo. Nas provas orais, as
matérias, de fazer crescer água na boca, versavam sobre tortas de agraço, tortas de peixe, empada de salmonete, torta de mexilhão,
empadas de solho, empadas de atum fraco, pastéis de berbigão, além de trutas do
rio e sua calda. Uma outra novidade do regimento
dos pasteleiros de 1762, e que seria
a última versão do curioso instrumento, é, sem dúvida, a lista de preços, que
muito contribuiu para um melhor conhecimento dos costumes gastronómicos do
nosso fabuloso século XVIII. Assim, do feitio
de um pastel de um arrátel de
came (cerca de meio quilo), pondo o pasteleiro o pão e os adubos da época, era legítimo receber 50 réis. Se o pastel
pesasse dois arráteis, e nas mesmas
condições de fabrico, cobrava o fabricante 80 réis se a came fosse de vaca e 70
réis se se tratasse de pastel de uma galinha.
Os trabalhos de forno, especialmente os assados, tinham tabela especial se fossem entregues pelos donos à
porta do estabelecimento convenientemente adubados e já prontos para a
assadura. Neste caso, o pasteleiro recebia, por assar um frango, pombo ou perdiz, apenas cinco réis, cobrando o dobro se se
tratasse de carneiro ou lombo ou de uma galinha. A assadura do pato custava vinte réis, a do leitão trinta
e a do peru quarenta, salvaguardando-se sempre a proposta do tempo de forno. Como se vê, muitas das técnicas hoje
utilizadas e tidas como invenção dos nossos dias são prática corrente há
séculos, com êxito comprovado, mencionando-se no próprio regimento dos pasteleiros que o costume de assar carnes e peixes
nas suas lojas era de grande utilidade pública por ser estilo nesse tempo dar de
comer a muitas pessoas particulares que vêm
de fora, a seus requerimentos e negócios e não querem usar a comida dos
quartéis. Entendendo por quartéis
referência clara às hospedarias e estalagens,
que Lisboa conhece bem desde as origens e que, pelos vistos, também forneciam
refeições, embora pouco apreciadas, o quadro ficará, completo trazendo à
ribalta as velhas e simpáticas
tabernas de Lisboa que em 1572
tinham regimento de ofício e eram já muito
mal afamadas.
Taberneiros e pasteleiros nunca se entenderam, acusando-se mutuamente
de graves interferências profissionais. As tabernas queixavam-se de que os
pasteleiros, para além da sua lucrativa actividade, se dedicavam muitas vezes a
pagar as comidas regimentais das pobres
tascas clara e objectivamente mencionadas na lei e que constavam de sopa;
carnes cozidas, peixes fritos; peixes salgados, saladas e legumes.
Os pasteleiros, por seu lado, acusavam os taberneiros de colocarem no
vão das suas portas cortinas brancas,
enganando os incautos que nelas entravam, julgando tratar-se de lojas de pasteleiro e das quais se
retiravam, desfeito o equívoco, amojados e envergonhados.
Do ofício de chocolateiro
Não oferece dúvidas que os chocolateiros, ou chicolateiros, lisboetas
que em 1745 já passavam cartas de profissão, segundo regimento
próprio, devem a sua existência a mais um produto que os Descobrimentos
ofereceram à Europa, o cacau. Cultura tradicional no
Brasil desde recuados tempos, penetrou nos nossos hábitos alimentares dando origem
a uma nova profissão, iniciada como simples curiosidade, impondo-se como ofício com rápida representação na Casa dos Vinte e Quatro, anexa ao Ofício
dos Oleiros, sob a bandeira de Santa
Justa e Santa Rufina.
Adoptando a prática dos exames em vigor noutras profissões, também os
chocolateiros restringiam aos mestres examinados e aprovados autorização para
fazer ou vender chocolate em espécie,
depois de os submeter a um conjunto de provas, versando as fases principais de
preparação do precioso pó». In Manuel Guimarães, Histórias de Ler e
Comer, Vega, Lisboa, 1991, ISBN 972-699-294-X.
Cortesia de Vega/JDACT