José do Telhado Agora
«Este nosso Portugal é um país em que nem pode ser-se salteador de fama,
de estrondo, de feroz sublimidade! Tudo aqui é pequeno: nem os ladrões chegam à craveira
dos ladrões dos outros países! Todas as vocações morrem de garrote,
quando se manifestam e apontam a extraordinários destinos. A Calábria, a ponta da bota que chuta no povo da Sicília,
é um desprezado retalho do mundo; mas tem dado salteadores de renome. Toda
aquela Itália, fica na Europa,
tão rica, tão fértil de pintores, escultores, maestros, cantores, bailarinas, jogadores
de futebol, até produzir quadrilhas de ladrões a bafejou o seu bom génio! Aí corre um grosso livro
intitulado, Salteadores celebres de Itália
(Europa). É ver como debaixo daquele céu está abalizada em alto ponto a graduação
das vocações. Tudo grande, tudo magnífico, tudo fadado a viver com os vindouros,
e a prelibar os deleites de sua imortalidade. Schiller, Victor Hugo, Charles
Nodier, se fada má lhes malfadasse o berço em
Portugal, teriam de inventar bandoleiros ilustres, a não quererem ir
descrevê-los ao natural nos pináculos da república. Apenas um salteador noviço vinga destramente os primeiros ensaios numa
escalada, sai a campo o administrador com os cabos, o alferes com o destacamento, o jornalismo
com as suas lamúrias em defesa da propriedade, e a vocação do salteador gora-se nas mãos da justiça (será
constitucional?)
Faltava o fio eléctrico para tolher que vinguem os génios espicaçados
pelo amor ao dinheiro amuado nas arcas
dos paupérrimos proprietários, inimigos de empresas industriais, e da circulação monetária, artéria
de primeira ordem na prosperidade de um país. Faltava o telégrafo para
matar à nascença as iniciativas auspiciosas. Apenas lá das povoações serranas desce à vila ou cidade a nova de um
roubo, o arame palpita de horror, e a cara do ladrão é para logo litografada na
fantasia de todos os esbirros sertanejos. A civilização é a rasa da
igualdade: desadora as distinções; é forçoso que os bandoleiros tenham todos os
mesmos tamanhos, e roubem civilizadamente, urbanamente.
Ladrão de encruzilhada, que traz o peito à bala e o bacamarte apontado
ao inimigo, esse há-de ser o bode
expiatório dos seus confrades, mais alumiados e aquecidos do sol benéfico da
civilização. Roubar industriosamente é engenho; saquear a ferro e fogo é roubo!.
Os daquela escola tropeçam nas honras, nos títulos, nos joelhos dos servis, que
lhes rojam em venal humilhação; os outros, quando escorregam, acham-se encravados
nos artigos 343, 349, 87, 433, 351, e mais cento e setenta artigos do Código
Penal, Civil ou Administrativo.
Diz algum tanto como exemplo desta lastimável anomalia a história de
José Teixeira da Silva do Telhado, o mais afamado salteador deste século.
Vulto de romance não o tem, porque neste país nem se completam ladrões para o
romance. Disse-me uma dama francesa de eminente espírito, que em Portugal
era a natureza, o céu e o ar que faziam os romances. Nem isso, minha
senhora. Aqui anda sempre o gume do
prosaísmo a podar os rebentões da natureza, mal eles infloram. Frutos
de servir para a novela levantada da comezinha chaneza de um conto à lareira,
nem mesmo os deixam amadurar na fama e nas façanhas de um salteador. Se não,
vejam: José do Telhado nasceu em 1816,
na aldeia de Castelões, comarca de Penafiel. Seu pai era o famigerado Joaquim
do Telhado, capitão de ladrões, valente como as armas, e raio devastador em
franceses que ele matava, porque eram franceses, e porque eram ladrões,
posto que, na qualidade de membro da nação espoliada, o senhor Joaquim chamasse
somente a si o que era fazenda nacional. Um tio-avô de José Teixeira,
chamado ele o Sodiano, já
tinha sido salteador de porte, e infestara o Marão durante muitos anos.
Se arrepiássemos carreira na linhagem do senhor José do Telhado, iríamos
encontrar-lhe um avoengo em Roma, (talvez na Calábria?) com uma sabina roubada
no Como». In Camilo Castelo Branco, Aquela Casa Triste, Brevíssima Portuguesa, Livraria
Civilização Editora, Porto, 1995, ISBN 972-26-1214-X.
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