O que mudou e o que ficou
«Sob o céu já a pardejar corria, alto, o vento, que não tardaria a
mungir, amanhando-as, aquelas nuvens mais grossas e sanguentas. Rochas e garças,
e mais rochas peladas, cinza dura, na desolação e loucura do montado. Alentejo
com chuva. Páscoa frustrada. Que tal
os trigos? A ver vamos... Há para aí alguns menos ruins...
Nos terrenos pascigosos, à beira da estrada que o Simca devora, surgem, agrestes e emblemáticos, os saramagos e as
grisandas. Sob as saraivadas bruscas, os ranchos da monda cobrem-se com lívidos
plásticos, fantasmais. No monte, o
silêncio alentejano, a decadência, a lonjura, os guizos, o olhar meigo dos
bichos. Calcorrreio sendas antigas que as ervas agora escondem. Por todo o lado
a imagem da minha mãe. Até nos locais que foram os do muro branco, do portão,
cujo sino repicava em azul, precisamente na Páscoa, quando o garotio vinha às
amêndoas e nos acordava, aos gritos, com uma constelação de alegria. Mãe, és tu
ou a terra que me julga aqui, em Moura, ao
pôr do sol? Que voz me pede contas
do meu destino?
Sigo com os olhos a correnteza do Ardila,
acompanho-a, com a suave tristeza destes passos no tempo, até ao moinho árabe,
onde a água se quebra em espumas glaucas. Ficaram ainda duas mulheres, com os filhos
de roda, a lavar a roupa e a cantar, os pés sem medo dentro da água fria. Este
som não está à venda: oferece-se ao espaço do meu regresso. São as mesmas
mulheres de negro de há vinte anos, apenas com as galochas que as campaniças de
outrora não usavam. Têm os maridos e os noivos em França ou em Lisboa na
construção civil.
Mas há ainda o Chico, o pastorinho das ovelhas, que tem de ir um dia ao
seu fim do mundo, quer dizer, a Beja (porque de ano para ano vai adiando, ou
lhe adiam, uma operação imprescindível) e pensa que virá então ver-me, ali ao
pé, do outro lado do Tejo. E o maioral que de uma vez se meteu a caminho até à
capital e logo renunciou a ficar, não entendendo como podia semelhante gente
viver com tanto barulho de automóveis que nem de noite param! É esse mesmo maioral,
homem de 40 anos apenas, mas bem usados, que canta por entre a melancolia dos
olivais:
Já os dias vão passando
e as semanas também vão.
Já secaram os eucaliptos
para as tábuas do meu caixão.
Árvores
Com a Primavera surgiram, numa quinta-feira cor de terra, entre a chuva
gasta e a morna infância do sol. Um rosto quieto e doce como um fruto secreto.
E a primeira árvore, verde, múltipla, desenhada à pena sobre três bolas de
fogo, as esferas deste insólito calor de Março. Em baixo, a avalanche, o
resvaladiço verde fresco da promessa que desperta. Há voos curtos de pássaros e
folhas novas, douradas, vermelhas e verdes também, folhas que adejam, ou vibram,
como borboletas, por entre os galhos ainda negros de duas árvores gémeas, com
ninhos».
In Urbano Tavares Rodrigues, Deserto com Vozes, Seara Nova, Lisboa,
1976.
Cortesia de Seara Nova/JDACT