domingo, 18 de agosto de 2013

José do Telhado. Aquela Casa Triste… Camilo Castelo Branco. «Quando ele, ao descer a última quebrada da serra, colhia flores silvestres para toucar os cabelos da prima, que bom coração de Gessner, que eflúvios do meigo Florian lhe recendiam no ambiente da vida!»

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José do Telhado Agora
«(…) A infância de José Teixeira correu desassinalada de algum facto que pressagiasse as porvindouras maldades. O pai escondia dos filhos o roubo e a arma homicida. Voltando das excursões demoradas explicava licitamente a ausência, e regalava a família de farta mesa e esquisitas prendas do estrangeiro, cujos direitos ele não pagava decerto, nem as tomadias lhe eram encarregadas pelo fisco. Tinha José Teixeira uma tia, irmã de sua mãe, casada em Lousada com um francês, hábil no lucrativo mester de castrador. Este francês tinha uma filha, de toda a bizarria e gentileza, muito estimada, e educada com certos ares de senhora. O primo já de criança a preferia a todas, e dos catorze anos em diante sentia que o magoava a ausência. Saudoso dela, pediu ao tio que lhe ensinasse o ofício, e o tivesse consigo algum tempo de aprendizagem. O francês anuiu à proposta, e a moça, que adivinhara o segredo, não cabia na pele de contente.
Esteve José Teixeira cinco anos na companhia de sua prima, e desses anos falava ele com lágrimas, quando me contava pueris incidentes, entalhados em sua memória com o buril da paixão. Era a caça o seu emprego nas horas desocupadas; mas, as mais das vezes, o caçador assomava num outeiro, de onde avistava a varanda, em que sua prima costurava, e aí estava contemplativo nela até que as sombras da noite, baixando da serra, lhe escondiam o lenço branco da prima, que o chamava a repetidos acenos. Que era isto senão doce poesia, como ela abrolha nas mais bem formadas almas? Onde estava o instinto do salteador naquele tempo?
Quando ele, ao descer a última quebrada da serra, colhia flores silvestres para toucar os cabelos da prima, que bom coração de Gessner, que eflúvios do meigo Florian lhe recendiam no ambiente da vida! Forçado já pelo amor e pela honra, José Teixeira, aos dezanove anos, pediu sua prima ao pai! Negou-lha o francês, dizendo que estivera muitos anos a ganhar dote à sua filha para casá-la com lavrador abastado. O moço, amante e honrado, revelou ao tio a culpa, cujo remédio estava no casamento. O francês recebeu a confissão como insulto, e repeliu de si a violentos empurrões o sobrinho. José Teixeira escassamente pôde dizer à sua prima que lhe fosse leal, e o esperasse até ao dia em que ele pudesse desprezar o património.
Foi o moço para Lisboa, e jurou bandeiras no segundo regimento de lanceiros, denominado o da Rainha. A esbelta figura de José Teixeira era o encanto dos oficiais. Nenhum camarada caía tão airoso na sela, nem meneava mais garboso a lança. O cavalo entendia-lhe o mais ligeiro tremor de pernas, e enfeitava-se orgulhoso do possante e galhardo moço, que lhe embridava os ímpetos, para realçar-lhe as soberbas graças. Na conhecida revolta dos marechais, em 1837, saiu José Teixeira na comitiva do duque de Saldanha, e mostrou quem era nos combates do Chão da Feira e Ruivães. Lá ouvi, me dizia ele, a cantiga das primeiras balas, e algumas me queimaram o cabelo, e vinham dizer-me ao ouvido que estivesse sossegado. O barão de Setúbal disse-me uma vez que choviam balas; e eu mostrei-lhe a lança, e disse: cá está o guarda-chuva, meu general: deixe chover!
Não esqueceu o valente Schwalback o afoito gracejo, quando a derrota lhe desordenava as filas.Como, em remate da luta, tivesse de emigrar para Espanha, o barão de Setúbal levou consigo, como sua ordenança, José do Telhado. Fez-se a convenção de Chaves, a tempo que o lanceiro recebia carta de sua prima, chamando-o a toda a pressa para se casarem com o consentimento do pai. Requereu o soldado a baixa, e obteve-a do barão de Vilar de Turpim, comandante da terceira divisão militar. Recebeu-o o francês em braços paternais, e dotou a filha com abundantes bens para mediania aldeã».

In Camilo Castelo Branco, Aquela Casa Triste, Brevíssima Portuguesa, Livraria Civilização Editora, Porto, 1995, ISBN 972-26-1214-X.

Cortesia da LCE/JDACT