Apócrifo: oculto ou falso
(…) Portugal já não andava alheio a todo este processo de influências, como
o provam os trabalhos de Mário Martins, ou os escritos de frei Fortunato de S.
Boaventura. Talvez devido às perseguições a que foram sujeitos, também os
diversos corpora dos escritos não
canónicos sofreram oscilações, tendo vindo a ser enriquecidos por descobertas
tão recentes como as dos Manuscritos do
Mar Morto e a Biblioteca de Nag
Hammadi. Estes documentos, se por um lado permitem atestar a veracidade de
alguns dos textos bíblicos, por outro têm contribuído para alargar o rol dos
livros apócrifos, gnósticos, ou testemunhos de heresias várias.
Ligação entre o vaso de óleos e a circuncisão
Respeitando as classificações dos especialistas citados, será necessário
considerar, para já, os textos conhecidos há mais tempo, como os Apócrifos da Infância e Natividade, onde se encontram menções
parcelares à figura de Maria Madalena. Começando pelo Evangelho Árabe da Infância, nele se encontra uma curiosíssima
referência que, através do vaso do óleo, liga Maria, a pecadora, à circuncisão de
Jesus.
E ao chegar o tempo da circuncisão,
isto é, o dia oitavo, o menino teve que se submeter a esta prescrição da Lei. A
cerimónia teve lugar na mesma cova. E sucedeu que a anciã hebreia tomou a
partezinha de pele circuncidada, outros dizem que foi o cordão umbilical, e
introduziu-a numa redomazinha de bálsamo feito de nardo. Tinha ela um filho
perfumista e entregou-lha, fazendo-o com todo o encarecimento esta
recomendação: Tem sumo cuidado em não vender a ninguém esta redoma de unguento
de nardo, por mais que te ofereçam por ela até trezentos dinheiros. E esta
é aquela redoma que comprou Maria, a pecadora, e que derramou sobre a cabeça e
os pés de Nosso Senhor Jesus Cristo, enxugando-os logo com os seus próprios
cabelos.
Esta variante aumenta de modo considerável o valor simbólico do óleo de
nardo, aqui enquanto perfume e, tradicionalmente, um dos aromas dedicados a
Afrodite. Segundo O Livro Santo chamado Mónada
ou Oitavo Livro de Moisés, fragmento de um papiro grego contendo parte de
um ritual de Mitra, provavelmente de origem Alexandrina, o nardo aparece como o
aroma aparentado a Afrodite. Recebe assim uma conotação algo erótica e, ao
mesmo tempo, sugere-se a predestinação do acto de ungir a Cristo, temas
essencialmente explorados na pintura pré-tridentina como, por exemplo, nas conversações sacras, veja-se
Mantegna (1490), Neroccio de Landi (1495) ou van Leyden (1522).
Permite também estabelecer já uma primeira ligação com uma lenda búdica
mais antiga,
A Conversão da Meretriz Vâsavadattâ,
onde a heroína tenta seduzir o belo e santo filho de um perfumista, acabando
numa dupla conversão. Por outro lado, fundamenta a ideia de Madalena como
patrona dos perfumistas, ou mesmo perfumista (escola do Rabi Yehuda Ben
Simon). Pode radicar ainda na própria tradição judaica que associa a
questão do perfume ao episódio bíblico de Tobias a queimar o fígado do peixe
como exorcismo: O odor do perfume
exprime-se em hebraico e nas línguas semíticas pela raiz RWH, RWI que designa o
espírito. Este aroma expulsa os maus espíritos...
O medo de Pedro e a coragem de Madalena
Comparando com os Apócrifos da Paixão
e Ressurreição, naturalmente que nestes é maior a quantidade de alusões,
mas pouco acrescentam aos dados canónicos. Assim, no Evangelho de Pedro a visita das santas mulheres ao sepulcro é
dramatizada, de modo primário, pela insistência no seu medo aos soldados romanos
e terror perante o túmulo vazio. Encontramos ecos destes receios em vários poemas
laicos que, sem este referente, surpreenderiam pelo excesso encomiástico no
louvor da coragem de Maria Madalena aquando da sua visita
ao sepulcro. Mais ou menos implicitamente, o episódio oferece-se como oposto à
cena em que, diante dos guardas, Pedro temerosamente nega conhecer a Cristo,
com saldo positivo para a figura feminina.
Madalena interlocutora privilegiada de Jesus
Dentro do Ciclo de Pilatos
destacam-se as Actas de Pilatos
ou Evangelho de Nicodemos,
pela influência que exercem a nível da iconografia cristã, mas também pelas
repercussões que parecem ter nalguns textos medievais portugueses, em particular
O segundo livro que fala de todo o feyto
e de todalas vidas e das paixões dos apostolos. Trata-se de um manuscrito
alcobacense de 1442-43, depois impresso sob o patrocínio da rainha D. Leonor
com o título de Autos dos Apostollos,
em Lisboa, em 1505, muito longe dos
canónicos, e retranscrito por frei Fortunato de S. Boaventura em 1829. É nestes
Autos que vamos encontrar a história
de José de Arimateia associada ao Santo Graal».
In Helena Barbas, Madalena, História e Mito, Ésquilo Edições, Lisboa,
2008, ISBN 978-989-8092-29-8.
Cortesia de Ésquilo/JDACT