«(…) Pisoteei meticulosamente o desenho com as minhas botinas cardadas,
até restar apenas uma lavra de areia remexida. Acto inútil. Não se apagam as
realidades destruindo-lhes os símbolos. Talvez muitas milhas além, no caminho do
cardador outros desenhos aparecessem e outras memórias fossem reavivadas.
Estava extinta a congregação do peixe?
Eu procurava convencer-me de que sim. Que
sabia eu? Foi pouco depois que Proserpino
me propiciou a surpresa da sua visita. Eu estava no meu pouso habitual, à mesa de
mármore verde, e fazia contas. Tinha vendido dois júgeros numa estrema da
propriedade, para me livrar de um conflito de demarcação com um dos meus
vizinhos, de comportamento demasiado rústico para o meu trato. O preço ajustado
era misto, quantificado em áureos, medidas de azeite e fardos de linho. Quis
verificar tudo, com cautelas amiudadas, porque a confiança não sobrava. Conferi
os preços dos géneros e decidi-me a passar a manhã de volta do ábaco e das tabuinhas.
Quando os cães romperam a ladrar e esboçaram uns arremessos em direcção ao
portão do muro, e um escravo estranho entrou e fez menção de os afastar com um
pau ferrado, julguei que era o meu vizinho que aí vinha, uma vez mais, a
lamuriar-se e a implorar reduções no clausulado.
Mas logo atrás do escravo, meio curvada, e muito temerosa dos cães,
apareceu aquela figura alta, adunca, nervosa, que eu tão bem conhecia e
desprezava algum tanto. Senti uma incomodidade quase dolorosa: Proserpino! Ergui-me, alarmado: que faria Proserpino aqui? Já Mara se velava, descia os degraus da
casa, muito serena, sossegava os cães e deixava que o intruso a saudasse. Não
manifestou qualquer surpresa e sorriu para Proserpino
como se o tivera visto no dia anterior. Mara
estava sempre à altura das situações. Ele vinha enjorcado num grande manto asiático,
bordado, cheio de pó, e trazia na cabeça um chapeirão de viagem, que logo
tirou, respeitosamente. Pelos gestos largos, percebi que pedia a Mara autorização para que a sua comitiva
entrasse. Mara disse qualquer coisa
em voz alta, escravos acorreram, afastaram os batentes do portão.
A liteira e os acompanhantes de Proserpino
passaram entre mim e Mara e foram
conduzidos à cavalariça. Enquanto o cortejo desfilava, imundo e cansado, Proserpino procurava-me com os olhos
inquietos. Distingui perfeitamente o seu olhar ansioso e a contracção da cara,
num esforço de atenção, quando, ao longe, se apercebeu da minha presença. Deu
dois passos, fitou melhor. Sorriu. Tinha-me reconhecido. Atirou um gesto
indeciso a Mara, numa cortesia
atabalhoada, e quase correu na minha direcção. - Lúcio, Lúcio, saúde! Que bom
ver-te, ao fim de todos estes anos...
Aí estava Proserpino, aos
tropeços no seu disforme manto, quase a rojar-se a meus pés. Que havia eu de fazer? Não podia
maltratar um hóspede que se mostrava solícito, embora não convidado. Dissimulei
a contrariedade. Propus-lhe restaurar-se no balneário, fiz-lhe companhia,
pedi-lhe conselhos sobre aquela minha transacção, admiti-o à mesa de mármore
verde, escutei-o com paciência e urbanidade. Depois, mandei que selassem duas
mulas e acompanhei-o num passeio pelos meus domínios. Proserpino não era muito afeiçoado ao campo, escapava-lhe completamente
a beleza de um sobreiro isolado numa clareira amarela de restolho, nunca tinha
lido Hesíodo, passava indiferente por
um santuário. Mas não deixou de citar Virgílio: feliz é aquele que conhece os deuses campestres...
Quis impressionar-me, discorrendo sobre Magão e o seu tratado de
lavoura. A um cartaginês, como Magão, assistiria a sensibilidade bastante para
se pronunciar sobre a agricultura do lado
de cá do Mediterrâneo? Ao falar, Proserpino
atirava a mão direita, bruscamente aberta, para diante, quase tocando as
orelhas da montada, como se procedesse incessantemente a lances enérgicos de
dados. Exprimia-se, minucioso e arredondado, mesmo sobre matérias de que nada
sabia, como um professor de retórica. Como é que um cartaginês havia de aspirar
à universalidade, ainda que fosse a
dissertar sobre vinhedos? Ademais, toda a gente sabe que o feliz
crescimento das plantas supõe encomendações aos deuses locais, nos tempos e
lugares próprios. Os rituais púnicos, afeiçoados a deuses púnicos, haviam de
convencer alguma vez as divindades de Itália ou as que tinham jurisdição sobre os campos da Hispânia?»
In Mário de Carvalho, Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde, Editorial
Caminho, Grande Prémio APE 1995, Prémio Fernando Namora 1996, Prémio Pégaso de
Literatura 1996, Lisboa, 1994, ISBN 972-21-0974-X.
Cortesia de Caminho/JDACT