Introducção
«A empresa de Christovam da Gama e dos quatrocentos soldados,
que com elle entraram em Ethiopia em 1541, é uma das mais heroicas dos
Portugueses no Oriente, de maior importancia religiosa e politica, e de mais interesse
militar. Havia mais de doze annos que o imam Ahmad ben Ibrahim al-Ghazi,
conhecido mais commummente pelo sobrenome de Granhe (canhoto), com um exercito,
composto de musulmanos de Adal e de Turcos mercenarios, havia invadido o antigo
reino de Ethiopia, vencera o seu rei em muitas batalhas, senhoreara quasi todas
as provincias do seu reino, destruira numerosas aldeias, incendiara as egrejas,
e vendia como escravos aquelles que não se convertiam ao islamismo e não se
submettiam ao seu dominio, foi então que Christovam da Gama com
quatrocentos soldados portugueses entrou em Ethiopia, e com o seu auxilio o rei
foi restabelecido no seu antigo poderio, o reino libertado da oppressão dos
musulmanos, e por ventura os habitantes d'aquelle paiz foram salvos de renegar
a religião christã.
Esta empresa foi perpetrada nas mais extraordinárias condições, e houve
-innumeras e grandes dificuldades a vencer. A marcha effectuou-se por um sertão
sem caminhos regulares; os portugueses primeiramente percorreram um paiz arido
debaixo de um sol ardentíssimo; depois subiram altissimas montanhas por
ingremes veredas, e transpuzeram profundos rios e torrentes, guardando sempre a
mais rigorosa disciplina e regular ordem tactica. Para transportar a artilharia,
munições e mantimentos fizeram os carros necessarios, tendo primeiramente de
cortar as arvores, serrar os troncos e afeiçoar a madeira; e ainda muitas vezes
os carros foram desfeitos, e as peças de artilharia desmontadas e levadas ás
costas cada uma das suas partes. No estacionamento o arraial foi fortificado com
tranqueiras e vallos, e guardado com vigilancia. No combate luctaram com prospero
successo com um exercito muitas vezes superior em numero, aguerrido e
victorioso, commandado por um capitão audacíssimo e feliz, cujo nome era o
terror e espanto de toda Ethiopia.
Aos soldados portugueses animava-os o mais vivo desejo de honrar a patria
e o ardente zelo da religião christã; e como diz o chronista do rei de
Ethiopia, eram varões valorosos e
constantes, que estavam sequiosos de pelejas como o lobo e famintos de combates
como o leão. O seu capitão era um moço activo e corajoso, educado na guerra
desde os mais tenros annos; e como diz o mesmo chronista, valoroso e constante, cujo coração era como o ferro e o bronze no
combate. Esse moco foi filho de Vasco da Gama, o grande navegador,
que fez o descobrimento do caminho maritimo da India.
Christovam da Gama
Vasco da Gama, 1º conde da Vidigueira, e almirante do mar da India, foi
casado com D. Catharina de Athaide; d'este matrimonio nasceram: 1. Francisco da Gama, 2º conde da
Vidigueira, almirante do mar da India, e Estribeiro mór d'el Rei João III.
NOTA: No manuscripto B-6-14 da Bibliotheca Nacional de Lisboa, actualmente Biblioteca Nacional de Portugal,
attribuido a Diogo do Couto, referem-se os successos de Vasco da Gama e de seus
filhos no Oriente. Este manuscripto é um livro de papel de 207 folhas de 0,29 X
0,21, encadernado, escripto com tres letras differentes do seculo XVIII. Tem
por titulo: Tratado de todas as cousas socedidas
ao valeroso Capitão Dom Vasco da Gama primeiro conde da Vidigueira: almirante
do Mar da India: no descobrimento, e conquistas dos Mares, e Terras do Oriente:
e de todas as vezes que ha India passou, e das cousas que socederam nella a todos
seus filhos. Dirigido a Dom Francisco da Gama conde da Vidigueira almirante do
mar Indico, e visorrei da India. Por Diogo do Couto Cronista e Guarda mor da
Torre do Tombo da India. A dedicatoria é datada de Goa de 16 de Novembro
de 1599. O tratado compõe se de duas
partes; na primeira contam-se os successos de Dom Vasco da Gama nas suas tres
viagens á India; na segunda referem-se os feitos de seus filhos Dom Estevam, Dom
Paulo, Dom Christovam e Dom Pedro da Silva no Oriente. A narração e identica á
das Decadas da Asia de Barros e de
Couto, umas vezes abreviada, e ouras reproduzida verbalmente.
In Miguel Castanhoso, Dos Feitos de D. Cristóvão da Gama em Etiópia, segundo
o original impresso em Fevereiro do anno de MDCCCXCVIII, Imprensa Nacional de
Lisboa, Sociedade de Geografia de Lisboa, Lisboa, 1953.
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