Um toledano diferente dos outros
«(…) Mas, para Tariq, esta mesa não era mais do que um símbolo de poder
e de riqueza. Portanto, escolheu-a. Mussa Ibn Nusayr, governador de Marrocos
que, em nome do califa de Damasco enviara Tariq para conquistar o reino
visigótico, soube do valor das riquezas encontradas em Toledo. Invejoso do
êxito do seu lugar-tenente, vem a Toledo e obriga Tariq a entregar-lhe a famosa
Mesa de Salomão: esta não pode deixar
de lhe pertencer.
Último episódio: agora é o califa que pede a Tariq e a Mussa uma
relação pormenorizada das suas conquistas e do seu saque e, portanto, os dois
homens tomam o caminho de Damasco. Quando se encontram os dois na presença do
califa, Mussa entrega a al-Walid, era o seu nome, a maravilhosa mesa afirmando
que foi esse o saque que ele recolheu pessoalmente aquando da tomada de Toledo.
Tariq previra uma tal felonia. Como prova da sua conquista da cidade, apresenta
ao califa uma das trezentas e sessenta e cinco pernas que tivera a precaução de
retirar, como prova da veracidade do que diz. Mussa foi condenado por ter
atribuído a si próprio méritos que pertenciam a outros. Foi-lhe proibido
regressar a Espanha. Perdoado mais tarde pelo seu soberano, morreu assassinado
numa mesquita de Damasco.
Este capítulo da conquista impressionou-me muito, continua Tulaytuli. O
homem mostra-se muitas vezes indigno do paraíso que Deus lhe concede nesta
terra. Toledo deveria ter continuado a ser aquela cidade onde teríamos podido
ser os mais felizes do mundo e no entanto, a sede do poder do dinheiro, dos
prazeres afastou-nos muitas vezes dessa alegria que emanava da própria cidade.
Este episódio da mesa ilustra-o bem. Durante esses séculos em que Toledo foi
Tulaytula, de 92 a 477 da Hégira (711-1085), estávamos submetidos a
forças contrárias que nos empurravam ora numa direcção, ora noutra. Por um
lado, estivemos em constante rebelião face ao poder de Córdova, que nos arrebatara
o título de capital, e que foi objecto de todas as atenções, primeiro dos
emires e depois dos califas. Quanto tempo perdido em disputas, em revoltas, em
guerras fratricidas!
Mas, por outro lado, esses acontecimentos transformaram-nos em verdadeiros
toledanos. Foi ao opormo-nos aos outros, aos cristãos do norte, é claro, mas
também aos cordoveses, que nos tornámos um só com a nossa cidade. Ser toledano
era reconhecer, era fazer sua essa fraternidade que se instalava na cidade
entre pessoas do Livro, judeus,
cristãos e muçulmanos. Todos nos uníamos na mesma causa contra Córdova. Toledo,
a insubmissa, não podia aceitar desempenhar sem protestos esse papel de cidade
de fronteira que lhe era atribuído em condições iguais às de Saragoça em Aragão
e de Mérida na Estremadura. Merecia voos mais altos. E quando nos sublevámos,
foi um poeta, Gulib ben Abd Allah quem se pôs à cabeça do levantamento. Os
versos inflamados que declamava do alto das muralhas aumentavam os nossos ardores
toledanos.
Mas Córdova obstinava-se em querer quebrar esta solidariedade. Entre
esses dias funestos que ensombraram a vida da cidade, há um que deixou em mim a
recordação mais dolorosa; é conhecido na história da cidade pelo nome o dia do fosso. ,Nesse dia, o
filho do emir al-Hakem I, de passagem por Toledo, organizou no palácio do
governador uma grande festa para que fora convidada toda a nobreza que existia
em Toledo. À chegada, os setecentos convidados eram conduzidos a um corredor
que terminava num grande fosso; na extremidade desse corredor, um esbirro, a
soldo do príncipe, decapitava-os e a cabeça e o corpo rolavam para o fosso. Como
então eu era um médico de fama em Toledo, as circunstâncias ditaram que tivesse
de entrar por outra porta. Apercebi-me de que ninguém chegava à sala do alcázar;
compreendi a armadilha e preveni aqueles que ainda estavam à espera.
Soube mais tarde que o príncipe Abd-el-Rahman, filho de al-Hakem,
conservou durante toda a vida a visão da espada tinta com o sangue das suas
vítimas. Esfregava incessantemente os olhos para tentar eliminar a
representação que se lhe impunha; isso transformou-se num tique nervoso de que
nunca se libertou». In Louis Cardaillac, Tolède, XII-XIII, Éditions Autrement,
Paris, 1991, Toledo XII-XIII, Muçulmanos. Cristãos, Judeus, O Saber e a
Tolerância, Terramar, Lisboa, 1996, ISBN 972-710-144-5.
Cortesia de Terramar/JDACT