sábado, 31 de agosto de 2013

O Prior do Crato Contra Filipe II. Evocação Histórica. Mário Domingues. «… o monarca estrangeiro não tardaria em persuadir-se da fidelidade canina de Jorge de Noronha, da qual chegara a duvidar, quando teve conhecimento dos bons serviços do traidor português…»

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Continua a alastrar o suborno. Aos vendidos chamava-se cristãos
«(…) O que progredia sempre, intimidando, entibeando, manietando os homens que poderiam opor-se às pretensões de Filipe II, ,era a corrupção de Castela, sabiamente ministrada pelo duque de Ossuna e, Cristóvão de Moura, os embaixadores espanhóis. Os corruptos usavam na sua linguagem particular termos que torpemente expressavam a sua visão moral da vida. Assim, cada português que aderia à causa castelhana, vendendo os seus irmãos, fazia-se crrstão. Mais um traidor era, em seu distorcido critério, mais um cristão. Jorge de Noronha, neto do segundo marquês de Vila Real, cuja adesão ao monarca vizinho se revestira de tanta baixeza como de ridículo, expediu de Almeirim, a 24 de Março de 1580, uma carta típica de fidalgo venal dessa época, em que o termo cristão se emprega no sentido que referimos: Que se deram as cartas e recados de S. M. [Sua Majestade] aos governadores e Braços [braços ou Estados do reino], e que se fizeram mui boas diligências com todos, cujo proveito vai aparecendo, porque já os mais deles estão rendidos, convertidos e feitos cristãos, e que se baptizararn na água das listas de mercês que S. M. fez a todos, as quais são mal merecidas, porque ainda não estão os caminhos de Portugal e Guadalupe cobertos de Portugueses. Pede licença para ser ele o primeíro que o faça, pois talvez muitos o sigam, sendo tão natural nos Partugueses a inveja.
Queria ele que os portugueses se postassem no caminho de Filipe II, na sua entrada em Portugal, para o reverenciar, e desejava ser o primeiro desses portugueses, esperando ainda que o seu exemplo, por emulação, por inveja contagiasse todos os seus compatriotas. Media o estofo moral dos outros pelos seus próprios sentimentos. Contudo, Sua Majestade duvidou da veracidade das informações e de tão cornpleta baixeza moral do informador, porque, à margem do extracto que lhe foi remetido, exarou a seguinte nota: Fica cá a carta, porque creio que será, míster enviá-la ao duque ou D. Cristóvão, pela razão que vos disse, e pela que há a respeito de quem a escreve.

Entretanto, o monarca estrangeiro não tardaria em persuadir-se da fidelidade canina de Jorge de Noronha, da qual chegara a duvidar, quando teve conhecimento dos bons serviços do traidor português, descritos no seguinte extracto de outra sua carta: Que muitos dos procuradores de bom e mutto bom ânimo no negócío se foram [por ocasião da dissolução das Cortes]; porque os melhores, já enfadados de não estarem todos de acordo, e de serem os de Lisboa, que era a cabeça, mal inclinados, começaram a partir. Que Manuel Sousa Pacheco, um dos procuradores de Lisboa, já não é companheiro de Febo Moniz, porque se fez cristão, e deu palavra ao bispo e ao arcebispo de Évora, de sê-lo sempre, e que todos se vão baptizando.
No mesmo papel que remete com a carta (datada de Santarém a 15 de Março e escrita por um procurador chamado Rodrigo Abreu) o nome que vai riscado é o dele, Jorge, e declara que assim se deu a ler aos Governadores. Nele representam aos ditos Governadores o desejo que tem a maior parte dos procuradores de paz e quietação, em conformidade do que o governo deseja, tudo pelo bem da cristandade. Aí dizem que é um engano pensar que prara tratarem dos concertos convém que sejam menos, quando todos querem paz e concórdia, porque já caíram na razão, e vêm que é necessário. O meio que apontam para isto se poder alcançar é chamá-lo dois a dois, pois chamando-os juntos dizem que não, por não haver quem queira em público.
Jorge diz que testifica i por que falou com os mais deles. Recomenda o segredo e a brevidade da execução. Que depois de se conseguir o resultado dirá quem fez a proposta, para ser agraciado. Adverte que até das terras escrevem cartas avulsas, em que lhe significam o mesmo, mas que não ousam falar, tanto pelas agitações que andam, como pelo que diz o vulgo. Pede que se restitua este papel, porque é de letra conhecida».

In Mário Domingues, O Prior do Crato Contra Filipe II, Evocação Histórica, edição da L. Romano Torres, Lisboa, 1965.

Cortesia de RTorres/JDACT