quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Os Venturosos. Leituras. Alexandre Honrado. «À janela, el-rei exalava. Era fedor que podia sentir-se em léguas por redor, e que se sentia muito, pois nesse dia muitos súbditos se interrogaram que sucesso passaria. Vil cheirete de emplastro malcheiroso em contágio de reino de odores tão misturados»

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«(…) Estou por todas. Mas se caçoais comigo, juro à fé de quem sou, e sou o grande, o absoluto, o senhor entre senhores, que te mando passar em degolado feito uma espada afiada abaixo dessa tua cabeça de maldito marrano excomungado. Pois se marrano ainda é suíno, que bem empregues palavras as que escolheste, pensou Nuno Coelho, aliás Zacuto de origem. Amarrou um lenço sobre a cara, começou a desdobrar o pivete da mezinha e o Rei a vomitar-se ia recusando, mas lá se deixou tratar, e Zacuto despiu-lhe os calções e aplicou, com um pano a resguardar-lhe as mãos, a mistela que trazia, assim mesmo em directo sobre as varizes, algumas muito roídas e purulentas, e depois meteu-lhe sobre elas faixas de pano e apressou-se a sair dali, com algumas fingidas mesuras e despedimentos.
El-Rei ainda tentou retê-lo, ameaçando-o, depois lá o largou e Zacuto apressou-se a abandonar o palácio, rumo ao seu clandestino novo lugar de habitação, local escondido que partilhava com a família e outras famílias de hebreus perseguidos... El-Rei ficou a sós com o cheirete. Foi-se pôr na varanda, mas nem assim corria ar fresco que aligeirasse a coisa. - Vou ter de aguentar se é para meu serviço e préstimo. Que esse judeu é um cão maldito, mas não há dúvida que também é afamado como o melhor do reino em seu mister... Juro que lhe como a filha depois de o matar, se isto é artimanha dele. Como-a, a piça e dente, mesmo que seja maldição para quem professa na crença da fê de Cristo ir às saias e ao que nelas se achar de uma judia...
À janela, el-rei exalava. Era fedor que podia sentir-se em léguas por redor, e que se sentia muito, pois nesse dia muitos súbditos se interrogaram que sucesso passaria. Vil cheirete de emplastro malcheiroso em contágio de reino de odores tão misturados... - Sou um rei na mer.., por assim dizer.

Era sempre com desagrado que o cardeal recebia frei Tomás. E era sempre por obrigação, sem qualquer estímulo ou alegria, que frei Tomás ia cumprimentar o cardeal depois de uma das suas, aliás famosas, viagens. Palra o cardeal, homens de muita cultura, fossem laicos ou eclesiásticos, estavam a meio passo da perdição. Os soldados de César e o califa de Omar é que tinham razão ao deitarem fogo à biblioteca de Alexandria. Que se lessem no mundo, e apenas, as Sagradas Escrituras e o Mundo estaria salvo! De resto, pensava o cardeal, pior ainda, frei Tomás era agostinho e os agostinhos gostam de pensar por sua própria cabeça, sendo que na maior parte das vezes o pensamento per si é já um pecado mortal.
Frei Tomás acabara de chegar de uma das suas longas jornadas. Da última, trouxera ideias estranhas quanto à Santa Inquisição (maldita), às indulgências, à bula de excomunhão, aos decretais... e desta o que traria? Ah, para quando o Tribunal do Santo Oficio (maldito) neste reino? Para quando um chefe, ele sentia-se à altura do desafio, como esse Torquemada que, sem emoções, varria a infidelidade da face da Terra de modo tão purificador e radical? - Bem-vindo sejais, frei Tomás. - O Senhor esteja convosco, cardeal. Ficaram em silêncio de mútua medição. - Muita coisa aconteceu neste reino durante a minha ausência, disse por fim frei Tomás. - Foi essa a vontade de Deus, embora a dos homens só a desajude... - Ouvi falar do que el-rei fez aos judeus... Pois é verdade que chegou a roubar-lhe os filhos para os baptizar?
Aí vem heresia, suspirou o cardeal. Se bem se recordava, este Tomás era mesmo amigo de alguns judeus e passava a vida entre o Carmo e a Trindade a visitá-los. Mas isso era no passado, a coisa acabaria... Os Agostinhos não prestam, pensou o cardeal. - El-Rei expulsou-os, guardou alguns para seu proveito, mas baptizando-os. Já não há judeus em este reino, pois. - Mas se eram pessoas de tão bom trabalho e de tantas riquezas?!!!
 - El-Rei sabe o que faz. E, de resto, os judeus nem são pessoas. Para que o fossem, quis El-Rei que os baptizássemos e guardou alguns no reino, mais suas fazendas e misteres. Os que ficaram, ficaram como cristãos-novos e até de cristãos têm os nomes... - Terá sido vontade de rainha... Mas se a rainha, entretanto, morreu... - As mulheres, segundo sabeis, não têm vontade e admiti-lo é uma heresia. As mulheres apenas têm caprichos e maldição... - Jesus foi concebido, em graça, no ventre de uma mulher... Os Agostinhos, ah, os Agostinhos!!! Bem faz Leão X, nosso papa, que os traz debaixo de olho... - Quereis comparar a Santa Mãe a uma mulher, mesmo rainha?
 - Sou homem de fé e não de comparações, e tal dizendo frei Tomás virou as costas ao cardeal. Assim que transpôs a porta, os seus passos conheciam rumo. Iria até à Conceição Velha, a ver se dava pelo paradeiro dos seus amigos, Isaac e Zacuto. Para trás ficava o cardeal, a resmungar: - Estes Agostinhos! Se não lhes pomos mão, e Deus nos guarde!, ainda acabam por criar alguma nova religião. Dito isto, o cardeal ajoelhou diante da Cruz e pediu a salvação do Mundo, coisa apenas possível, a seu ver, com a erradicação dos Agostinhos da face da Terra».

In Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000, ISBN 972-42-2392-2.

Cortesia de C. de Leitores/JDACT