Lisboa e as antigas casas de comeres. Do ofício de chocolateiro
«(…) Começava o exame pela apreciação dos cacaus, pronunciando-se o
aluno sobre características e qualidades. Seguia-se o cálculo da porção e, logo a seguir, o descasque. Finalmente, misturava-se o açúcar. Ao lado do chocolate em espécie, preparava-se e
comercializava-se o chocolate em bebida
também da responsabilidade de mestre examinado que, obrigatoriamente, lhe
apunha a sua marca. Os particulares
podiam, para consumo próprio, chamar a sua casa um mestre chocolateiro pata
fazer a bebida, a qual, em nenhum caso, podiam vender, concorrendo com as lojas.
As desobediências a esta regra eram frequentes e os protestos dos profissionais
não se faziam esperar, como consta do requerimento dos juízes e mestres do ofício
apresentado a D. Maria I em 1778
queixando-se de um Manoel José de Figueiredo, dono de muitas lojas de bebidas,
o qual, fiado na grande amizade que teve do marquês de Pombal, levou o
desplante a ponto de mandar fazer uma
copiosa fábrica para abundar a cidade e moradias dela do dito chocolate,
com pleno desprezo das leis de regulamento em vigor e para desgraça e prejuízo dos
cento e cinquenta chocolateiros que nessa época trabalhavam em Lisboa legalmente.
A exemplo do que se passava nos outros ofícios directamente ligados à
alimentação do povo, a venda pública de chocolate, em espécie ou em bebida, suscitou
cuidados especiais, para evitar fraudes e abusos. Começou-se pela determinação
rígida da composição oficial que mais não poderia conter além de cacau, canela, baunilha e açúcar, tudo
fresco e bem conservado, evitando prejuízos aos que tomavam o chocolate por gosto
e, sobretudo, aos que o tomavam como remédio. Chegou-se mesmo a exagerar nas
exigências, considerando o açúcar mascavado
substância danosa para a saúde pública e, por isso mesmo, proibida nos
chocolates. O facto motivou forte protesto de juízes e mestres do ofício que esclareceram
as autoridades informando da existência de duas espécies de açúcar mascavado, o mascavado macho, admissível no chocolate e mesmo responsável pelo
seu preço acessível, e o mascavado baixo,
inadmissível no chocolate e susceptível de causar prejuízos.
O princípio do fim
Apesar da tenacidade com que defendiam os seus direitos, sobretudo a
exclusividade de fabrico e vendas, não foi possível evitar os desmandos de tendeiros e merceeiros, que, nas suas
lojas, faziam e vendiam chocolate perante o desespero dos mestres examinados,
que garantiam que as fraudes cresciam assustadoramente, depois que a venda tinha sido facultada a pessoas estranhas.
Aqui e ali apanhava-se um infractor, apreendendo-lhe o produto fabricado, que
era lançado ao mar se fosse considerado suspeito, ou entregue, por
misericórdia, ao Hospital de São Lázaro ou... aos presos do Limoeiro.
Mas a onda de desobediência era assoladora, obrigando os oficiais
jornaleiros do ofício de chocolateiro a declarar em documento oficial nos
princípios do século XIX que grande parte da classe tinha emigrado ou mendigava
pelas ruas de Lisboa. Perdendo antigos privilégios, os chocolateiros diluíram a
sua arte noutros ofícios, passando, com prática maior ou menor, a todas as
casas de comidas e bebidas e recolhendo, finalmente, quase em exclusivo, às
confeitarias, cujas actividades se tomaram, com o andar dos tempos, cada vez
mais compatíveis com o agradável aroma do saboroso chocolate.
Do regimento do oficio de confeiteiro
As infelizmente raras tabuletas que designaram por confeitaria os actuais estabelecimentos que se destinam à venda de
doces perpetuam, quase sempre sem o saber, uma designação muito antiga,
anterior a 1539, quando os confeiteiros
portugueses se juntavam na Casa dos Vinte
e Quatro, sob a bandeira de São Miguel. Actividade importante e estimada,
ou não fossem os Portugueses gulosos inveterados, em 1771 os confeiteiros de Lisboa eram já cabeça de bandeira, sob a égide de Nossa Senhora da Oliveira. Cobriam peras e abóbora, derrabavam erva-doce,
confeccionavam granjeia, alfenim e açúcar a retalho, regalias que merceeiros e tendeiros lhes
disputavam continuamente. Mas a luta dos confeiteiros não se confinava aos seus
colegas das tendas e das mercearias. Em 1644,
queixavam-se eles de mais de duzentas
mulheres de má fama, as quais, sem temor das penas, andavam publicamente vendendo
doces, sem pesos e falsificados, por casas de jogo, sem nisto poder haver
remédio algum...»
In Manuel Guimarães, Histórias de Ler e Comer, Vega, Lisboa, 1991, ISBN
972-699-294-X.
Cortesia de Vega/JDACT