segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Histórias de Ler e Comer. Manuel Guimarães. «… raras tabuletas que designaram por ‘confeitaria’ os actuais estabelecimentos que se destinam à venda de doces perpetuam, quase sempre sem o saber, uma designação muito antiga, anterior a 1539»

jdact

Lisboa e as antigas casas de comeres. Do ofício de chocolateiro
«(…) Começava o exame pela apreciação dos cacaus, pronunciando-se o aluno sobre características e qualidades. Seguia-se o cálculo da porção e, logo a seguir, o descasque. Finalmente, misturava-se o açúcar. Ao lado do chocolate em espécie, preparava-se e comercializava-se o chocolate em bebida também da responsabilidade de mestre examinado que, obrigatoriamente, lhe apunha a sua marca. Os particulares podiam, para consumo próprio, chamar a sua casa um mestre chocolateiro pata fazer a bebida, a qual, em nenhum caso, podiam vender, concorrendo com as lojas. As desobediências a esta regra eram frequentes e os protestos dos profissionais não se faziam esperar, como consta do requerimento dos juízes e mestres do ofício apresentado a D. Maria I em 1778 queixando-se de um Manoel José de Figueiredo, dono de muitas lojas de bebidas, o qual, fiado na grande amizade que teve do marquês de Pombal, levou o desplante a ponto de mandar fazer uma copiosa fábrica para abundar a cidade e moradias dela do dito chocolate, com pleno desprezo das leis de regulamento em vigor e para desgraça e prejuízo dos cento e cinquenta chocolateiros que nessa época trabalhavam em Lisboa legalmente.
A exemplo do que se passava nos outros ofícios directamente ligados à alimentação do povo, a venda pública de chocolate, em espécie ou em bebida, suscitou cuidados especiais, para evitar fraudes e abusos. Começou-se pela determinação rígida da composição oficial que mais não poderia conter além de cacau, canela, baunilha e açúcar, tudo fresco e bem conservado, evitando prejuízos aos que tomavam o chocolate por gosto e, sobretudo, aos que o tomavam como remédio. Chegou-se mesmo a exagerar nas exigências, considerando o açúcar mascavado substância danosa para a saúde pública e, por isso mesmo, proibida nos chocolates. O facto motivou forte protesto de juízes e mestres do ofício que esclareceram as autoridades informando da existência de duas espécies de açúcar mascavado, o mascavado macho, admissível no chocolate e mesmo responsável pelo seu preço acessível, e o mascavado baixo, inadmissível no chocolate e susceptível de causar prejuízos.

O princípio do fim
Apesar da tenacidade com que defendiam os seus direitos, sobretudo a exclusividade de fabrico e vendas, não foi possível evitar os desmandos de tendeiros e merceeiros, que, nas suas lojas, faziam e vendiam chocolate perante o desespero dos mestres examinados, que garantiam que as fraudes cresciam assustadoramente, depois que a venda tinha sido facultada a pessoas estranhas. Aqui e ali apanhava-se um infractor, apreendendo-lhe o produto fabricado, que era lançado ao mar se fosse considerado suspeito, ou entregue, por misericórdia, ao Hospital de São Lázaro ou... aos presos do Limoeiro.
Mas a onda de desobediência era assoladora, obrigando os oficiais jornaleiros do ofício de chocolateiro a declarar em documento oficial nos princípios do século XIX que grande parte da classe tinha emigrado ou mendigava pelas ruas de Lisboa. Perdendo antigos privilégios, os chocolateiros diluíram a sua arte noutros ofícios, passando, com prática maior ou menor, a todas as casas de comidas e bebidas e recolhendo, finalmente, quase em exclusivo, às confeitarias, cujas actividades se tomaram, com o andar dos tempos, cada vez mais compatíveis com o agradável aroma do saboroso chocolate.

Do regimento do oficio de confeiteiro
As infelizmente raras tabuletas que designaram por confeitaria os actuais estabelecimentos que se destinam à venda de doces perpetuam, quase sempre sem o saber, uma designação muito antiga, anterior a 1539, quando os confeiteiros portugueses se juntavam na Casa dos Vinte e Quatro, sob a bandeira de São Miguel. Actividade importante e estimada, ou não fossem os Portugueses gulosos inveterados, em 1771 os confeiteiros de Lisboa eram já cabeça de bandeira, sob a égide de Nossa Senhora da Oliveira. Cobriam peras e abóbora, derrabavam erva-doce, confeccionavam granjeia, alfenim e açúcar a retalho, regalias que merceeiros e tendeiros lhes disputavam continuamente. Mas a luta dos confeiteiros não se confinava aos seus colegas das tendas e das mercearias. Em 1644, queixavam-se eles de mais de duzentas mulheres de má fama, as quais, sem temor das penas, andavam publicamente vendendo doces, sem pesos e falsificados, por casas de jogo, sem nisto poder haver remédio algum...»

In Manuel Guimarães, Histórias de Ler e Comer, Vega, Lisboa, 1991, ISBN 972-699-294-X.

Cortesia de Vega/JDACT