O Comércio do Invisível
«(…) Não quis apurar a nitidez das imagens e preferiu deitar os olhos
para a escuridão do tempo anterior ao seu nascimento. Foi capaz de
reconstituir, maravilhada, a vida dos pais e dos pais dos pais, assim
sucessivamente até aos patriarcas antigos que entravam nos relatos do cónego de
Braga. Contemplou comovida o desespero de Balaão diante do estupor sagrado do
seu asno e a retirada das águas diante da ousadia de Moisés. Apreciou a luta do
neto de Abraão com o anjo e viu a fúria simpática de Sara contra o seu Deus. O
derradeiro ponto dessa espiral de humanais gerações, que a memória lhe dava a
conhecer, era o Paraíso inicial, o paradisum
voluptatis, com o rio de quatro braços, as árvores, o ouro sem impureza, a
goma aromática, dita bdélio, e o lápis de ónix.
Quando Leonor Teles ouviu, no meio das religiosas que em surdina salmodeavam,
o cónego citar o bdellium, a resina
medicatriz, que curava todos os males e que surgira na primeira terra do
Paraíso, regada pelo melhor braço do grande curso de água que Deus criara para
chegar a todas as partes do divino Jardim, reconheceu a fragrância inebriante
que lhe surgira pela vez primeira na casa das provisões culinárias da tia
Guiomar. Afinal as surpresas do aroma eram nada menos que as delícias da
primeira essência terrena, quando a corrupção ainda não se introduzira na vida
da Terra. O segundo resultado foi ainda mais assombroso. O facto de ter
deparado com os portões abertos da memória, permitira-lhe entrar sem intromissões
por esse espaço anterior da vida com o à-vontade de quem visita um reino
desconhecido mas real. Estivera em Toro, em Évora, em Zamora e assim por
sucessivas partes até chegar à terra do Dilúvio ou da primeira criação.
Ganhara com isso a percepção duma visão anterior, que lhe parecia apta
a examinar outros caminhos. Até aqui, soubera concretizar numa realidade
espessa e viva todo o passado pessoal ou colectivo; agora, da posse dessa visão
interior que lhe permitia cristalizar o passado numa realidade tão presente
como a da matéria, estava na disposição de condensar outros mundos, aqueles
onde viviam os seres sobrenaturais ou infranaturais. Se Jacob lutara a noite
inteira com um anjo e Job fora atormentado por um demónio, era porque decerto
havia outros mundos, onde esses seres de natureza imaterial viviam à luz do seu
dia como os homens, as árvores e os bichos viviam neste à luz do Sol. E se os
olhos interiores de Leonor serviam para dar vida ao passado, colocando-o diante
de si com uma nitidez mais precisa que a da realidade presente, também deviam
prestar para indagar esses planos invisíveis e transnaturais, dando-lhes
visibilidade e consistência.
Aplicou-se nesse novo propósito. A princípio teve dificuldade em isolar
os mundos habitados por esses outros seres que de vez em vez se misturavam ao
nosso. Não via mais que um buraco negro, por onde corriam traços de luz azul, vermelha
ou branca. Depois, pouco a pouco, como quem fixa uma imagem que treme, foi
focando a irrealidade desses mundos, revelando-lhes a existência e fixando-lhes
a realidade. Lá estavam as cortes dos anjos e dos demónios, os primeiros
vivendo num sopro aéreo e os segundos numa flama ígnea. Apressou-se a
observá-los; preferia agora explorar esses seres distintos que os simples, de
carne e osso, que viviam no presente ou no passado. À medida que os foi
estudando percebeu que todos eram entidades subtis, criaturas do mundo
espiritual, que se diferenciavam pelo plano que habitavam, superior ou
inferior, uns muito próximos da luz e outros muito distantes dela. Qualquer
dessas criaturas não tinha forma definida, porque a todo o momento se
transformava num novelo palpitante de metamorfoses, impossível de fixar numa
forma distinta.
De qualquer modo, pelo hábito de examinar atentamente essas estranhas formas
de vida, foi-lhe possível diferenciar todos eles e até identificar alguns em particular.
Viu os querubins, que tinham por missão guardar o Paraíso com a espada de fogo,
impedindo o homem de comer os frutos imortais da árvore da vida. Esses mesmos
seres que Ezequiel outrora identificara com face de homem e corpo de leão.
Distinguiu os serafins, emissários também da vontade divina, adornados de seis
asas, e envolvidos por um bálsamo de resina que curava todas as dores. Mas além
das grandes famílias, pôde ela encontrar alguns dos celestes intervenientes
particulares na história do homem. Identificou o anjo Rafael que aparecera a
Tobias sob a forma de homem e o levara a curar a cegueira de seu pai, Tobit,
com o fel dum peixe. Reconheceu Gabriel, o arcanjo que desceu junto do jovem
Daniel, o adivinho de Nabucodonossor, para o ajudar a interpretar urna visão
onírica. Do mesmo modo, não teve dificuldade em verificar os traços identificadores
de vários dos espíritos inferiores. Viu Asmodeu, o demónio que matara os sete
noivos de Sara, filha de Ragüel. Contemplou Azazel, que se alimentara no deserto
dos antigos rituais de expiação. Diferenciou por fim Lilit, o demónio com seios
de fêmea, que assombrara, nos tempos da saída do Paraíso, a vida dos primeiros
homens, e que para sempre se infiltrara no sangue e na história do homem e da
mulher».
In António Cândido Franco, Vida Ignorada de Leonor Teles, Edições
Ésquilo, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-8092-59-5.
Cortesia de Ésquilo/JDACT