sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

A Bastarda de Istambul. Elif Shafak. «… algo saiu totalmente errado e a respiração que prendeu escapou como um soluço. O médico não demonstrou surpresa. Estava acostumado com aquilo; as mulheres sempre choravam»

Cortesia de wikipédia

«(…) Não gostava do silêncio. Na verdade, detestava o silêncio. Tudo bem que as pessoas a olhassem fixamente na rua, no bazar, na sala de espera do médico, aqui e ali, dia e noite; tudo bem que a observassem e fixassem estupidamente, confrontando-a longamente com os olhos de novo, como se a vissem pela primeira vez. De um modo ou de outro, sempre podia defender-se dos seus olhares. O que não podia era lutar contra o seu silêncio. Senhor… Senhor… Quanto é o quilo?, perguntou uma mulher na janela do andar de cima de um edifício do outro lado da rua. Sempre era divertido para Zéliha ver como os habitantes daquela cidade conseguiam facilmente, quase sem esforço, inventar nomes improváveis para profissões comuns. Era possível acrescentar um eiro a praticamente qualquer coisa vendida no mercado, e logo um novo nome era incluído na longa lista de profissões urbanas. Assim, dependendo do que era vendido, podia-se facilmente ser chamado de tangerineiro, maçãzeiro, aguadeiro ou…, aborteiro. Naquele momento, Zéliha já não tinha mais dúvida. Não que precisasse de alguém para confirmar sua própria certeza, mas fizera também um teste na clínica recém-aberta nas vizinhanças. No dia da grande inauguração, o pessoal da clínica ofereceu uma vistosa recepção para um grupo de selectos convidados, e enfileirou buquês e guirlandas do lado de fora da entrada para que os passantes também fossem informados do evento. Quando Zéliha visitou a clínica no dia seguinte, a maioria das flores já murchara, mas os folhetos continuavam tão coloridos quanto antes.

Teste de gravidez grátis com exame de glicose!, diziam as fluorescentes letras maiúsculas. Zéliha desconhecia a correlacção entre os dois, mas mesmo assim fizera o teste. Quando os resultados chegaram, a sua taxa de glicose revelou-se normal e estava grávida. Senhorita, pode entrar agora!, chamou a recepcionista parada na entrada, lutando com outro r, desta vez um r difícil de evitar na sua profissão. O doutor está à sua espera. Pegando na caixa de copos de chá e no salto quebrado, Zéliha levantou-se de um pulo. Sentiu todas as cabeças voltarem-se para ela, registando cada gesto seu. Normalmente ela teria caminhado o mais rápido possível. Naquele momento, contudo, os seus movimentos eram visivelmente lentos, quase lânguidos. Quando estava prestes a deixar a sala, fez uma pausa e, como que pressionada por um botão, virou-se sabendo exactamente para quem olhar. Lá, enquadrado pelas suas pupilas, estava um rosto muito amargo. A mulher de véu na cabeça fez uma careta, os olhos castanhos obscurecidos de ressentimento, os lábios movendo-se, amaldiçoando o médico e aquela adolescente de 19 anos prestes a abortar o filho que Alá devia ter concedido não a uma garota desleixada, mas a si mesma. O médico era um homem robusto, que transmitia força com a sua postura erecta. Ao contrário da recepcionista, não havia nenhum julgamento no seu olhar, nenhuma pergunta insensata na sua boca. Pareceu acolher Zéliha irrestritamente. Ele fê-la assinar alguns papéis e, em seguida, mais papéis para o caso de algo não dar certo durante ou depois do procedimento. Perto dele, Zéliha sentiu os nervos relaxarem e a sua pele afinar-se, o que era muito ruim porque sempre que isso acontecia ela tornava-se frágil como um copo de chá e não conseguia evitar as lágrimas. E aquilo era uma coisa que realmente odiava. Tendo um profundo desprezo por mulheres choronas desde pequena, Zéliha prometera nunca se transformar numa daquelas misérias ambulantes que espalhavam lágrimas e lamentações bobas por toda parte e das quais havia muitas à sua volta. Proibira-se de chorar. Até aquele dia, em geral conseguira manter a sua promessa. Quando, e, se as lágrimas subiam a seus olhos, simplesmente prendia a respiração e lembrava a promessa feita. Assim, naquela primeira sexta-feira de Julho, fez mais uma vez o que sempre fizera para sufocar as lágrimas: respirou profundamente e ergueu o queixo, como um sinal de força. Daquela vez, no entanto, algo saiu totalmente errado e a respiração que prendeu escapou como um soluço. O médico não demonstrou surpresa. Estava acostumado com aquilo; as mulheres sempre choravam». In Elif Shafak, De Volta a Istambul, A Bastarda de Istambul, 2007, Editora Nova Fronteira, tradução de Myriam Campelo, ISBN 978-85-209-1996-5, Jacarandá Editora, 2015, ISBN 978-989-875-237-6.

Cortesia de EBF/JEditora/JDACT