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«(…)
Não gostava do silêncio. Na verdade, detestava o silêncio. Tudo bem que as
pessoas a olhassem fixamente na rua, no bazar, na sala de espera do médico,
aqui e ali, dia e noite; tudo bem que a observassem e fixassem estupidamente,
confrontando-a longamente com os olhos de novo, como se a vissem pela primeira
vez. De um modo ou de outro, sempre podia defender-se dos seus olhares. O que
não podia era lutar contra o seu silêncio. Senhor… Senhor… Quanto é o quilo?, perguntou
uma mulher na janela do andar de cima de um edifício do outro lado da rua.
Sempre era divertido para Zéliha ver como os habitantes daquela cidade
conseguiam facilmente, quase sem esforço, inventar nomes improváveis para
profissões comuns. Era possível acrescentar um eiro a praticamente
qualquer coisa vendida no mercado, e logo um novo nome era incluído na longa
lista de profissões urbanas. Assim, dependendo do que era vendido, podia-se
facilmente ser chamado de tangerineiro, maçãzeiro, aguadeiro
ou…, aborteiro. Naquele momento, Zéliha já não tinha mais dúvida. Não
que precisasse de alguém para confirmar sua própria certeza, mas fizera também
um teste na clínica recém-aberta nas vizinhanças. No dia da grande inauguração,
o pessoal da clínica ofereceu uma vistosa recepção para um grupo de selectos
convidados, e enfileirou buquês e guirlandas do lado de fora da entrada
para que os passantes também fossem informados do evento. Quando Zéliha visitou
a clínica no dia seguinte, a maioria das flores já murchara, mas os folhetos continuavam
tão coloridos quanto antes.
Teste
de gravidez grátis com exame de glicose!, diziam as fluorescentes letras
maiúsculas. Zéliha desconhecia a correlacção entre os dois, mas mesmo assim
fizera o teste. Quando os resultados chegaram, a sua taxa de glicose revelou-se
normal e estava grávida. Senhorita, pode entrar agora!, chamou a recepcionista
parada na entrada, lutando com outro r,
desta vez um r difícil de evitar na
sua profissão. O doutor está à sua espera. Pegando na caixa de copos de chá e no
salto quebrado, Zéliha levantou-se de um pulo. Sentiu todas as cabeças voltarem-se
para ela, registando cada gesto seu. Normalmente ela teria caminhado o mais
rápido possível. Naquele momento, contudo, os seus movimentos eram visivelmente
lentos, quase lânguidos. Quando estava prestes a deixar a sala, fez uma pausa
e, como que pressionada por um botão, virou-se sabendo exactamente para quem
olhar. Lá, enquadrado pelas suas pupilas, estava um rosto muito amargo. A
mulher de véu na cabeça fez uma careta, os olhos castanhos obscurecidos de ressentimento,
os lábios movendo-se, amaldiçoando o médico e aquela adolescente de 19 anos
prestes a abortar o filho que Alá devia ter concedido não a uma garota
desleixada, mas a si mesma. O médico era um homem robusto, que transmitia força
com a sua postura erecta. Ao contrário da recepcionista, não havia nenhum
julgamento no seu olhar, nenhuma pergunta insensata na sua boca. Pareceu
acolher Zéliha irrestritamente. Ele fê-la assinar alguns papéis e, em seguida,
mais papéis para o caso de algo não dar certo durante ou depois do
procedimento. Perto dele, Zéliha sentiu os nervos relaxarem e a sua pele
afinar-se, o que era muito ruim porque sempre que isso acontecia ela tornava-se
frágil como um copo de chá e não conseguia evitar as lágrimas. E aquilo era uma
coisa que realmente odiava. Tendo um profundo desprezo por mulheres choronas
desde pequena, Zéliha prometera nunca se transformar numa daquelas misérias
ambulantes que espalhavam lágrimas e lamentações bobas por toda parte e das
quais havia muitas à sua volta. Proibira-se de chorar. Até aquele dia, em geral
conseguira manter a sua promessa. Quando, e, se as lágrimas subiam a seus
olhos, simplesmente prendia a respiração e lembrava a promessa feita. Assim, naquela
primeira sexta-feira de Julho, fez mais uma vez o que sempre fizera para
sufocar as lágrimas: respirou profundamente e ergueu o queixo, como um sinal de
força. Daquela vez, no entanto, algo saiu totalmente errado e a respiração que
prendeu escapou como um soluço. O médico não demonstrou surpresa. Estava
acostumado com aquilo; as mulheres sempre choravam». In Elif Shafak, De
Volta a Istambul, A Bastarda de Istambul, 2007, Editora Nova Fronteira,
tradução de Myriam Campelo, ISBN 978-85-209-1996-5, Jacarandá Editora, 2015,
ISBN 978-989-875-237-6.
Cortesia de EBF/JEditora/JDACT
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