sábado, 30 de janeiro de 2016

Psiché. Fernando Campos. «Escrevo Silva Lisboa e não meu avô porque, como narrador que conta os factos muitos anos volvidos, desejo aproveitar esse distanciamento para ganhar a perspectiva e imparcialidade…»

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A memória do esquecimento
«Lembrava‑se apenas de que se esquecera... ou esquecera‑se de se lembrar. Que queria? Fraca memória a sua!, suspirava. Os anos!... Fernanda tinha muitas vezes comigo este desabafo e eu tomava‑lhe a preocupação, procurava colar‑lhe os restos das lembranças, reconstituía‑as em mantas de retalhos, a tentar conservar o calor das veias, a cor das faces, o brilho de um olhar, o tom de uma voz, o latejar dos corações atingidos pelo gelo do tempo que chegou ao seu limite... Procurar trabalhar a matéria perpetuável, no limiar do eterno... e transpô‑lo! Tomar o esquecimento e recolocá‑lo na memória! Repor a memória no pedestal do esquecimento, na cidade indiferente e distraída..., nas cidades, vilas, aldeias e lugares distraídos e indiferentes por onde Silva Lisboa espalhou a rodos a fantasia e o riso!... Antes que o verme pontual e infalível roa com suas mandíbulas tenazes os últimos músculos putrefactíveis, ainda vivos, que o sal do artista fez contrair num sorriso, vibrar e estalar numa gargalhada. Fixar as recordações para ao menos essas se não transformarem em cinza!... Descuidados que somos até da única certeza indesmentível! Dir‑se‑á não querermos acreditar que nascemos mortais. Surpreende‑nos sempre desprevenidos a notícia da morte. A carta, o telegrama que nos bate à porta quando se está longe. O telefone que toca como tantas vezes rotineiras... Está? Fernando?, Sim. É para te dizer que o avô...
O gesto lento, interiorizado, de pousar no descanso o telefone. Então aquele foi mesmo o último suspiro?... E aquele corpo vai arrefecer?... Do espantoso lance teatral inesperadamente surgido no cemitério junto ao corpo exânime do actor, ao fechar do caixão, quando o padre pronunciava as últimas encomendações, lançava as derradeiras aspersões de água‑benta, traçava no ar a cruz do requiem e um coveiro avançava com a pá de cal viva, far‑me‑iam relato mais tarde os parentes que assistiram. Estranha realidade: nenhuma das versões é coincidente! Eu encontrava‑me no norte, para lá das montanhas, desmaiava Setembro. Grande a azáfama do abrir das aulas. A mulher, pesadona, a três meses do fim do tempo. Eu não possuía ainda carta nem carro nesse tempo e a única possibilidade de me deslocar para ir assistir ao enterro era aquele comboiinho de brincar que levava meio dia a chegar, depois de fumegar e resfolegar as voltinhas gaiatamente apitadas, trepando a montes de vento e lobos, espreitando telhados isolados, adormecidos em vales perdidos, bordejando pegos e córregos de vertigem. Apareciam os pais a trazerem os filhos para o internato, os professores vinham pelos horários e as cadernetas. Tudo eu fazia ali, naquele colégio que era de brincar como o comboio. A única coisa bonita que tinha era estar alcandorado nas velhas muralhas medievais bordadas de lírios a olhar o rio largo e lento sob a ponte de Trajano. De resto achava‑me praticamente só num barco a naufragar. Trinta alunos que mal davam para as despesas, um sócio que fugira mal cheirara o descalabro, deixando‑me com as suas dívidas. Director, prefeito, administrador, professor de tudo e mais alguma coisa, português, francês, inglês, desenho, treinador de jogos, para evitar ter de pagar a outros aquilo que eu não recebia. Vinte e seis anos de idade..., a construção do meu futuro!...
O telefone tocara no meio da barafunda do início do ano lectivo e das preocupações. Não se deve expor a uma tal viagem agora, foi a proibição do Mário Carneiro. Nem pensar! Ela concordava, virava‑se para mim: tu... Também não podes ir. Não há ninguém para te substituir no colégio. Foi assim que não estive presente no funeral de Silva Lisboa. Escrevo Silva Lisboa e não meu avô porque, como narrador que conta os factos muitos anos volvidos, desejo aproveitar esse distanciamento para ganhar a perspectiva e imparcialidade possíveis e desfazer a natural emoção. Silva Lisboa e Albertina, Raquel e Alberto Tavares, Fernanda e Alberto Campos..., e Mário..., e Ana de Jesus..., e Maria José..., e João..., e Josué..., e a desconhecida... Pessoas, personagens de romance. Lembro a última imagem que dele me ficou. Chegara o fim de Agosto e partíamos, eu e Maria Olga, com as duas filhas, acabadas as férias grandes, para o nosso castelo roqueiro, por causa da abertura do colégio. Fomos ao quarto dele despedirmo‑nos. Olhou‑nos com um sorriso a disfarçar o ar triste, sentado na borda da cama, seu pijama de flanela azul às riscas. Mostre‑me as suas mãos!, recordo‑lhe a voz dirigindo‑se à Maria Olga. Pegou‑lhas vivamente quando ela as estendeu de costas para cima. Gostava de falar com ela, que tinha muita paciência para o escutar, lhe fazia atenciosa companhia quando lá passávamos uns dias. Deixava‑a arrancar‑lhe pormenores da sua vida que a mais ninguém confidenciara. Talvez porque mais ninguém lhe fazia ou ousava fazer perguntas ou se sentia à vontade para lhas fazer». In Fernando Campos, Psiché, Difel, Lisboa, 1987, Dl nº 83973.

Cortesia de Difel/JDACT